13/10/2009

Ainda sôbre a vida dos pescadores


Não tive conhecimento da notícia da morte recente de pescadores Portugueses, o que depreendi tivesse acontecido através da leitura do lindo, embora nostálgico poema da nossa querida companheira de escrita no "Sempre Jovens", Ana Martins, pessoa que muito admiro.

O seu triste poema, de conotação dramática, homenageia a vida dos pescadores e isso trouxe à minha memória quadros pesados, de acontecimentos que vivi em pequena e durante a minha juventude, já que meu Pai, tendo nascido na Praia de Vieira de Leiria, onde ainda temos membros da nossa família, gostava de ir lá passar férias, tão frequentemente quanto lhe era possível.
Essa localidade, onde existe a antiga Praça dos Letras, hoje com outro nome, ocupa uma grande parte das minhas memórias, uma das quais recordo com particular carinho. Havia um primo meu, pescador, que sempre que o mar o permitia, era despertado por um outro pescador, da sua companhia (sociedade entre pescadores), às 6h da manhã, com o chamamento -"Ó Ganeno, o mar está maannnso!" Claro está que eu, na altura com 5/6 anos, despertava com o apelo e ficava excitadíssima pois sabia que, nesse dia, ia haver peixinhos para o meu balde.

Quando o tempo estava cinzento e o mar encrispado, era comum assistir-se a quadros duma carga dramática impressionante. A partida dos pescadores para o mar, numa atmosfera de violência provocada pelas fortes ondas, levava as suas famílias para a beira-mar as quais, arrantando-se de joelhos pela areia e bradando aos céus, rogavam ao santo padroeiro dos pescadores o milagre de trazê-los de volta. Normalmente vestidas de negro, com os seus lenços amarrados à cabeça e cruzados na frente, deixando uma das faces mais tapadas do que a outra, davam à praia um cenário de angustiante espera, a qual só acalmava quando o barco chegava com sucesso à zona do mar onde as ondas não encrispavam tanto. Mas os gritos recomeçavam sempre que o barco se escondia entre duas ondas.

Umas famílias ficavam sentadas na praia, até ao regresso do barco, outras, talvez com mais coragem, seguiam para casa, regressando, apenas, quando eram avisadas de que a companhia estava de regresso. Era chegada a segunda fase daquele tormento. Se o mar tivesse acalmado, era fácil, caso contrário, voltávamos a assistir à repetição de gritos e preces feitas em alta-voz.

Chegados à praia havia, ou uma hilariante onda de regozijo e ciúme, entre as companhias dos pescadores que foram ao mar, ou havia uma decepcionante atmosfera por ter caído pouco peixe na rede. Eu adorava, porém, o encanto do momento da recolha da rede, retirada do mar por bois duma força potente, ajudados pelos presentes, que puxavam a corda seguindo atrás deles, para ajudá-los na sua dura tarefa. Eu delirava com tudo aquilo. Com o meu balde de lata, pintado de lindas e coloridas côres e cheio de água do mar, esperava que o meu primo me desse peixinhos para colocar dentro dele, para poder devolvê-los de novo ao mar. Como eu gostava daquele momento. Pelo menos salvava alguns. O drama dos outros peixes que acabavam por morrer, passava-me despercebido, ou pelo menos não o recordo.

Não posso deixar de referir um escritor da terra, José Loureiro Botas, nascido em 6 de Julho de 1902 e falecido a 18 de Junho de 1963. Profundamente ligado às suas raízes, eu aconselharia a leitura do seu livro Maré Alta", onde descreve, como poucos, a vida daquela gente da sua praia, numa época bastante difícil.
Maria Letra
Fotografia do album de família

7 comentários:

A. João Soares disse...

A vida, todas as profissões têm aspectos melhores e piores, dependendo do gosto de cada e um e da respectiva capacidade de adaptação. Os momentos de alegrias alternam com os de tristeza. O êxito e o fracasso não são perenes.

Beijos
João

Luis disse...

Querida Mizita,
Que bela descrição da faina piscatória! Foi tão bem descrita que as suas imagens me fizeram reviver um filme sobre o mesmo tema que se chama "Ala Arriba" e era passado na Nazaré. Engraçado que cá para o sul se chamam às companhias dos pescadores companhas! Talvez derivado do companheirismo que é vivido entre eles.
Realmente há profissões muito perigosas e esta é uma delas, pois o mar é muito traiçoeiro!
Conheço muito bem a praia de Vieira de Leiria pois comecei a minha vida militar em Leiria, no RI7 e por isso muitas vezes lá fui, acresce ainda que a PSP tinha lá uma colónia de férias e quando estive na Polícia visitei-a várias vezes também. Era uma praia lindíssima. Espero que actualmente esteja ainda mais bonita.
Como vê o mundo além de redondo é muito pequeno... Sem nos conhecermos andámos por lá na mesma altura!
Um grande beijinho.

Maria Letr@ disse...

Obrigada, amigo João Soares, pelo comentário. Palavras que expressam uma realidade nem sempre positiva, nem sempre negativa..., mas é isso mesmo.
Beijos.
Maria Letra

Maria Letr@ disse...

Olá Luís,
Obrigada pelo seu comentário.
Tem razão, havia lá, realmente, uma Colónia de Férias, onde estive a passar férias, tinha talvez 5/6 anos, quando minha Mãe adoeceu gravemente e o meu Pai, dividindo-se entre o dilema de não poder abandoná-la nessa altura e a necessidade de irmos para a praia - coisa que, para ele era, naturalmente, importantíssima - recorreu a essa colónia e lá fomos nós. Apesar de termos lá muita família, como referi, uma parte Letra e outra Tomé, ele seria incapaz de deixar-nos fosse com quem fosse. Digo-lhe, meu amigo, que foi divertidíssimo! Adorámos dormir na companhia de todas aquelas companheirinhas, das refeições em conjunto e, SOBRETUDO do pão de sêmea com figos de pingo de mel que comíamos, sistematicamente, todos os dias, às 16h, na praia, momento este que eu esperava sempre com tanta ansiedade, pois nunca tinha, antes, comido as duas coisas em conjunto. Nunca mais encontrei pão tão saboroso.
Se bem se recorda, as casas eram em madeira, com as cozinhas caiadas de branco, regularmente, TODOS os sábados e tinham as paredes forradas a papel, as mais pobres a papel de jornal. Como tenho saudades desse tempo.
Obrigada por ter-mo recordado.
Um abraço.
Maria Letra

Unknown disse...

Querida amiga e colega Mizita,
Também não tive conhecimento da morte de pescadores na data em que escrevi o poema.
Contudo às vezes através de uma imagem surge um poema, e foi o caso deste, o barquinho da foto é de papel mas permitiu que eu viajasse nele e me levou ao drama que muitas vezes pescadores e suas famílias vivem.

Falando do seu texto, devo dizer que concordo com o Luís, a descrição desses momentos inesquecíveis da sua infância foi tão boa, que não foram precisas sequer imagens para que eu conseguisse em pensamento visualisar esses momentos.

Quanto à zona, também a conheço bem e gosto muito, durante 10 anos fiz campismo no parque da Orbitur em S. Pedro de Moel, para mim uma das belezas do nosso Portugal.

Beijinhos,
Ana Martins

Maria Letr@ disse...

Obrigada, Ana, pelo seu comentário ao meu.
Conheço bem o Parque de Campismo que refere, pois também eu sou amante do campismo e fui visitá-lo durante uma das minhas férias na Praia da Vieira porque tinha lá uns amigos. S. Pedro de Moel, quanto a mim, está mais bonita, contudo estou muito ligada à terra do meu Pai por razões que se prendem com os familiares dali e, sobretudo, com aquele cantinho que vivi, muito diferente de hoje que, quanto a mim, está pior, faltando-lhe o típico das casas de madeira, dos tremoços farinhentos, que hoje já não há, com as pevides secas, os colares de pinhões e as camarinhas. Hoje é tudo a armar ao 'desenvolvido', ruidosa, cheia de gente que não respeita nada, nem ninguém. É uma verdade que não pode ser negada e que dá mais intensidade às minhas ligações ao passado e à minha saudade do que já não há. Os bailes à noite, as escapadas às discotecas... Foi dali que parti, rumo a Londres, para estudar, quando tinha 22 anos. Não conseguiria partir sem primeiro, ter as minhas férias nesse local que amo.
Um grande beijinho.
Maria Letra

Luis disse...

Minhas boas amigas,
Eis como um post nos reuniu através das nossas recordações e quando isso acontece parece que revivemos e nos dá forças para as novas caminhadas que se avizinham!
Para além do post em si que estava lindo adorei as lembranças que permitiu haver entre nós!
beijinhos amigos.