12/04/2009

QUANDO ME TORNEI INVISÍVEL

hamiltonslide@gmail.com, recebido por e-mail do amigo Luís, em formato pps.

O desabafo de uma idosa.

Já não sei em que data estamos. Lá em casa não há calendários e na minha memória as datas estão todas misturadas. Me recordo daquelas folhinhas grandes, uns primores, ilustradas com imagens dos santos que colocávamos no lado da penteadeira. Já não há nada disso. Todas as coisas antigas foram desaparecendo. E sem que ninguém desse conta, eu me fui apagando também....

Primeiro me trocaram de quarto, pois a família cresceu. Depois me passaram para outro menor ainda com a companhia de minhas bisnetas.

Agora ocupo um desvão, que está no pátio de trás. Prometeram trocar o vidro quebrado da janela, porém se esqueceram, e todas as noites por ali circula um ar gelado que aumenta minhas dores reumáticas.

Mas tudo bem...

Desde há muito tempo tinha intenção de escrever, porém passava semanas procurando um lápis. E quando o encontrava, eu mesma voltava a esquecer onde o tinha posto. Na minha idade as coisas se perdem facilmente: claro, não é uma enfermidade delas, das coisas, porque estou segura de tê-las, porém sempre desaparecem.

Noutra tarde dei-me conta que minha voz também tinha desaparecido. Quando eu falo com meus netos ou com meus filhos não me respondem. Todos falam sem me olhar, como se eu não estivesse com eles, escutando atenta o que dizem. As vezes intervenho na conversação, segura de que o que vou lhes dizer não ocorrera a nenhum deles, e de que lhes vai ser de grande utilidade.

Porém não me ouvem, não me olham, não me respondem. Então cheia de tristeza me retiro para meu quarto e vou beber minha xícara de café.

E faço assim, de propósito, para que compreendam que estou aborrecida, para que se dêem conta que me entristecem e venham buscar-me e me peçam perdão …Porém ninguém vem...

Quando meu genro ficou doente, pensei ter a oportunidade de ser-lhe útil, lhe levei um chá especial que eu mesma preparei. Coloquei-o na mesinha e me sentei a esperar que o tomasse, só que ele estava vendo televisão e nem um só movimento me indicou que se dera conta da minha presença. O chá pouco a pouco foi esfriando… e, junto com ele, meu coração...

Então, noutro dia, lhes disse que quando eu morresse todos iriam se arrepender. Meu neto menor disse: “Ainda estás viva vovó? “. Eles acharam tanta graça, que não pararam de rir. Três dias estive chorando no meu quarto, até que numa manhã entrou um dos rapazes para retirar umas rodas velhas e nem o bom dia me deu.

Foi então quando me convenci de que sou invisível... Parei no meio da sala para ver, se me tornando um estorvo me olhavam. Porém minha filha seguiu varrendo sem me tocar, os meninos correram em minha volta, de um lado para o outro, sem tropeçar em mim.

Um dia se agitaram os meninos, e me vieram dizer que no dia seguinte nós iríamos todos passar um dia no campo. Fiquei muito contente. Fazia tanto tempo que não saía e mais ainda ia ao campo!

No sábado fui a primeira a levantar-me. Quis arrumar as coisas com calma. Nós os velhos tardamos muito em fazer qualquer coisa, assim que adiantei meu tempo para não atrasá-los. Rápido, entravam e saíam da casa correndo e levavam as bolsas e brinquedos para o carro. Eu já estava pronta e muito alegre, permaneci no saguão a esperá-los.

Quando me dei conta eles já tinham partido e o carro desapareceu envolto em algazarra, compreendi que eu não estava convidada, talvez porque não coubesse no carro. Ou porque meus passos tão lentos impediriam que todos os demais caminhassem a seu gosto pelo bosque. Senti claro como meu coração se encolheu e a minha face ficou tremendo como quando a gente tem que engolir a vontade de chorar.

Eu os entendo, eles vivem o mundo deles. Riem, gritam, sonham, choram, se abraçam, se beijam. E eu, já nem sinto mais o gosto de um beijo. Antes beijava os pequeninos, era um prazer enorme tê-los em meus braços, como se fossem meus. Sentia sua pele tenrinha e sua respiração doce bem perto de mim. A vida nova me produzia um alento e até me dava vontade de cantar canções que nunca acreditara me lembrar.

Porém um dia minha neta Laura, que acabava de ter um bebé disse que não era bom que os anciãos beijassem aos bebés, por questões de saúde... Desde então já não me aproximo deles, não quero lhes passar algo mal por minhas imprudências. Tenho tanto medo de contagiá-los !

Eu os bendigo a todos e lhes perdoo, porque...
‘QUE CULPA EU TENHO DE TER ME TORNADO INVISÍVEL?’

4 comentários:

Luis disse...

Amigo João,
A nossa sociedade está-se esquecendo dos mais velhos. Os mais novos quando aí chegarem verão quanto é ingrata tal atitude!
Um abraço deste sempre jovem

A. João Soares disse...

Caro Luís,
Obrigado por me teres cedido este texto e a sugestão de o publicar aqui.
Se as actuais crianças não inverterem o sentido degradante que a sociedade tem levado, acabarão por ter um fim muito negro, porque sem inversão do rumo, as coisas tornar-se-ão piores.
Parece que se o Nostradamus ou outro vidente célebre, estivesse no activo, diria que não tardarão os tempos em que o economicismo, se continuar pelo caminho que leva, conduzirá à eutanásia forçada pela família e pelo Poder político: Quando um reformado, depois de deixar a vida activa, for pela primeira vez ao médico, mesmo que tenha uma doença grave, ouvirá do médico dizer: leve esta aspirina e tome com um copinho de água, e se não passar volte cá. Claro que isso não o cura e ele volta e, então, o médico diz: Não esteja preocupado, antes de se deitar tome este comprimido com um pouco de água tépida e vai ver que amanhã estará bom e nada lhe doerá. E ele no dia seguinte não sente mais dores nem nada! Está no Paraíso.
O Estado poupa, na pensão de reforma, nos serviços de saúde e noutros eventuais apoios a dar a idosos. Os herdeiros tomam posse da herança. O crime compensa, o amor ao dinheiro e a falta de ética e de sentimentos dão destes resultados.
Os médicos hoje não colaborariam nisto mas os estatutos de ética da ordem virão a ser actualizados e os funcionários do Estado têm que cumprir as ordens superiores.
Achas que sou duro? Mas talvez seja um profeta a prever um futuro maia ou menos próximo.
Aos políticos não se pode comprar um carro usado, não merecem a mínima confiança. Almeida Santos levou este importantíssimo tema para discussão no Congresso do PS como se o País não tivesse nada mais relevante a estudar.

Um abraço
João Soares

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Amigo João,

Este tema e sobretudo a forma como está escrito tocou-me profundamente.

Já percebeu seguramente, como reajo mal quando se desprezam, se maltratam, se ignoram, se desrespeitam as pessoas de mais idade.
Saudáveis ou doentes, mais ou menos senis, seja lá qual for o seu estado, todos eles bem como todos nós (mais tarde ou mais cedo passaremos inevitavelmente pelas mesmas circunstâncias) merecemos todo o respeito e carinho.
Não é só neste País que se maltratam os menos jovens, mas é vergonhoso que façamos parte da lista de países que assim trata quem tudo deu em prol da família, da Nação, que lutou por causas injustas, que passou fome, que foi vítima do fascismo, é no mínimo escandaloso.

Abraço,

Adelaide disse...

Caros amigos,

Depois de ler este texto, escrito com tanta beleza, simplicidade e verdade, e depois de ler o comentário do amigo João, não sou nem capaz de articular palavra por sentir que um nó se alojou na minha garganta que me tirou toda a possibilidade de fazer o comentário a que me propunha.
Ainda ninguém teve a ideia de criar o Museu do Idoso. Muito haveria para colocar nele que chamasse a atenção do não idoso e o levar a pensar um pouco no que o espera também com o decorrer dos anos que, correm a passos largos como todos sabemos mas muitos esquecem.
Triste vida a dos idosos que, mesmo assim, e tratando-se da própria família, não esquecem a palavra perdão.

Triste
Mara