29/07/2009

A minha primeira desilusão

Tinha acabado de chegar, com os meus pais e a minha irmã, a casa duns amigos de família, em Vieira de Leiria, localidade onde nasceu meu pai e onde iríamos passar o fim-de-semana. Recordo a dona da casa, esposa dum amigo do meu pai, vestida de escuro, com um lenço preto amarrado na cabeça e cruzado na frente, tapando-lhe parte de uma das faces. Estava a lavar a louça. Puxei-lhe a saia e perguntei-lhe:

- Como te chamas?
- Chamo-me Lola.
- Ó Lola, dá-me água.

Dado que estava com anginas e com bastante febre, alguém deve ter-lhe feito qualquer sinal, porque a água não me foi dada. Minha mãe pegou-me ao colo e levou-me para uma das duas camas do quarto onde iria dormir com a minha irmã. Ainda hoje seria capaz de descrever como era o quarto, embora minha Mãe me tenha assegurado que eu tinha, apenas, dois anos de idade.

Já de pijama e sentada na cama, esperava a tão desejada água, mas a água tardava a chegar. Eu via a Lola, do ângulo em que me encontrava. Continuava na banca da cozinha, a lavar a louça. Decorridos alguns minutos - não tenho consciência de quantos mas pareceram-me uma eternidade - minha mãe entra no quarto com uma chávena almoçadeira, com sopas de pão em leite quente. Escusado será dizer que gritei como uma desalmada, porque ter-me sido negada a água que tanto desejava, substituindo-a por leite quente, representava, para mim, uma traição. Não era do leite quente que eu estava à espera, mas minha mãe receou que, com alta temperatura, a água fria me fizesse mal. Hoje, com quase 93 anos e uma alimentação muito saudável, minha mãe seria incapaz de fazer o que fez. Sabe muito bem o que devemos ou não fazer para mantermos a saúde ou tratarmo-nos quando estamos doentes.

Um relato da minha infância, uma primeira desilusão a que se seguiram tantas e tantas outras. Contudo, esta teve um sabor a engano e será, talvez por causa deste simples episódio, que ainda hoje não suporto que alguém tente lançar-me poeira aos olhos ... Amo a frontalidade e a verdade, mesmo que cruéis.

Maria Letra

6 comentários:

Gisele Claudya disse...

Adoro ler histórias de vida. E amei esta, mesmo que triste.
Beijocas

Maria Letr@ disse...

Olá Gisele Claudya.
Obrigada pelo seu comentário.
Este episódio da minha vida não posso classificá-lo, propriamente, de triste. Foi uma primeira desilusão que acho curioso recordar por dois motivos, sendo o primeiro o facto de ter apenas 2 anos, segundo afirma minha Mãe e, depois, porque talvez venha dele esta minha aversão ao engano, à falta de frontalidade que, como adulta, não consigo digerir bem.
É muito importante estarmos atentos à sensibilidade duma criança. A teimosia que muita gente tem de pensar que a criança não está atenta a pequenos pormenores, até mesmo dum olhar, é um engano. O meu médico costumava dizer que a 'manha' da criança começa ao 5.º dia de nascimento. Talvez tivesse razão, embora eu não lhe chamasse manha, talvez lhe chamasse 'despertar'.
Um abraço.
Maria Letra

EDUARDO POISL disse...

Não achei triste, ate por que passei por uma desilusões na minha infância que ate hoje tem algumas sequelas, gostei muito de ler o texto.
Abraços

Maria Letr@ disse...

Obrigada, Uma Página para Dois, pelo seu comentário, embora lamente muito que ainda hoje tenha sequelas. Tive uns Pais maravilhosos, que sempre tiveram muito cuidado com a minha educação e confesso que a minha sequela deste acontecimento não tem a gravidade de outras, mais profundas, sofridas ao longo da minha vida, mas eu sempre tive a grande virtude de saber ultrapassar, da melhor forma possível, este tipo de marcas. Além disso, o que contei não foi tão grave quanto o serão outras sofridas por crianças deste mundo. Seria bom que os pais estivessem sempre alerta, porque o que se passa na infância marca mais do que o que se passa depois desta fase.
Um bom dia.
Maria Letra

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Mizita,

Se essa foi a sua primeira desilusão que se lembra (eu chamar-lhe-ia contrariedade), não foi nada.
Diria mesmo mais, a menina portou-se como "mimada", não leve a mal.
A sua mãe pensou que estaria a fazer o melhor por si, como bem sabe.

Há, efectivamente, pequenas coisas que nos marcam mais do que outras.
É assim que se aprende a vida.

Beijo

Maria Letr@ disse...

Obrigada, Ná, pelo comentário.
Se não foi nada, porque o recordo tão claramente, se tinha, apenas, 2 anos de idade? Para mim, foi um engano, sim. Foi assim como quem diz ... "com papas e bolos, se enganam os tolos". Teria sido bom que, na altura - e aqui é que nasceu o motivo porque não esqueci nunca - antes de aparecerem as sopas de leite, me tivesse sido dito porque era que não iria poder beber água fria. Mas repare que este episódio não causou qualquer tipo de mágoa em relação à minha querida Mãe que, na altura, tinha 22 anos.
Um abraço.
Maria Letra