18/08/2009

"Um Espírito Lutador"



Na urbanização onde moro toda a gente o conhece bem; a ninguém que com ele se cruze, ou que apenas o aviste, ele passa despercebido. Desde que o estado do tempo o permita, podemos nós vê-lo, apoiado na sua bengala, arrastando o seu corpo velho e frágil ao longo do passeio, com passo lento e tremido. A intervalos regulares, ditados pelo cansaço, tem ele que fazer uma pausa, sentando-se normalmente sobre os baixos muretes dos jardins, aí ficando até recuperar o fôlego antes de poder prosseguir para nova etapa, invariavelmente sempre curta.
Há alguns anos atrás, sofreu ele uma forte trombose, da qual nunca recuperou totalmente. A sua perna direita tornou-se um peso morto , quase inerte, que ele tem que arrastar com grande esforço; só a sua determinação obstinada, que consegue transformar nas forças que lhe faltam, o impede de desistir.

O filho, em casa de quem vive, gostaria que o “velhote” não saísse sozinho, mas ele recusa-se a dar-lhe ouvidos. “ Já tentei convencê-lo, tantas vezes … mas não serviu de nada; ele recusa-se a ficar em casa, pura e simplesmente ; ´ não quero estar preso ` , é o que me responde; é teimoso que nem uma mula velha, e a menos que o amarre lá dentro não há nada que eu possa fazer” , desabafa ele, por vezes, com os vizinhos mais chegados.

E não é que ele se contente em dar apenas um passeiozinho dentro dos limites da urbanização - nada disso! Ele chega, por vezes, a ir mesmo até ao Porto, que fica ainda a uns bons dez quilómetros de distância, não se preocupando nada com o facto de precisar da ajuda de terceiros para entrar e sair do autocarro, tão confiante ele está de que de uma maneira ou de outra lá se há-de desenrascar. Ao vê-lo, muitas são as pessoas que certamente se perguntarão: “Mas que anda esta santa criatura a fazer aqui no meio da rua, quando mal consegue mexer-se? Um destes dias ainda vai acabar atropelado por um desses malucos que por aí andam sem cuidado, quando estiver a atravessar.. e ele nem sequer olha a ver se vem algum carro … devia, mas é, estar em casa!”

Ele, certamente que pensará de outro modo; que o melhor que tem a fazer é aproveitar aquilo que a vida ainda lhe pode oferecer; gozar a liberdade dos passeios fora de casa enquanto as forças lho permitem, em vez de ficar enfiado dentro de quatro paredes, porque, lá no fundo, ele bem sabe que mais cedo ou mais tarde - porventura mais cedo do que tarde - irá ter todo o tempo do mundo à sua disposição para dar descanso àqueles seus ossos, velhos e cansados.
Vitor Chuva
19-08-2009-2009


Vitor Chuva

6 comentários:

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Olá Vitor!

Foi mais uma vez, com um prazer imenso, que reli a história verídica deste ser humano fantástico, de uma coragem invejável, determinação inabalável e sabedoria imensa.

Quanto à forma como te exprimes, tu já conheces bem a minha opinião, mas atrevo-me a dizer aqui publicamente que há muito "dito escritor" que não tem metade do teu mérito.
Leiam o mesmo texto em Inglês em
http://vitorchuva-shortstories.blogspot.com/ é simplesmente fenomenal.

Beijinho,

Luis disse...

Amigo Vitor Chuva,
Texto muito expressivo e como eu compreendo esse homem que afinal o que pretende é viver em liberdade, e quem é que não quer o mesmo? Cada qual goza essa liberdade como pode e a dele é mesmo muito sofrida!
Um abraço amigo.

Adelaide disse...

Amgo,

É uma história de vida. É o descer da colina a passos lentos para não cair e chegar mais depressa ao fundo.
É o lento anoitecer de quem viveu com força e coragem para vencer os obstáculos que a vida dá de presente a um de nós. Todos vamos descer a colina, a menos a vida seja roubada de forma abrupta.

É uma linda história, muito bem descrita, como sempre, e até a imagem escolhida está de acordo com ela. O cair da folha outonal que aqui significa o Outono da vida.
É também triste e muito comovente.

Parabéns Vitor.

Abraço
Mlai

Adelaide disse...

Emenda....de presente a CADA um de nós...


Milai

Maria Letr@ disse...

Parabéns! Tema de grande realismo, amigo Vitor Chuva. Aprecio imenso a sua forma de descrever os seus temas: suave, clara e harmoniosa. Não gosto nada de repetir-me, mas não posso deixar de referir aqui a minha Mãe, de novo, que com os seus quase 93 anos, move-se pela mesma razão, provavelmente: recusar-se a esperar sentada. Sai todos os dias, mesmo que com 30 ou 5ºC. Quando fica em casa, sofre muito. Fica triste, parecendo sentir a vida escapar-lhe. Depois sai e, quando regressa, vem cheia de vida. Como podemos proibi-la? Impossível!
Como a compreendo!
Beijinhos.
Maria Letra

Vitor Chuva disse...

Olá a Todos!

Obrigado a todos vós pelos vossos simpáticos comentários. Ser-se "menos jovem" não tem nada de fácil, e este senhor, felizmente para ele, será certamente uma das poucas excepções que contraria regra, na forma como lida com o Outono da vida.

Um abraço!

Vitor Chuva