26/02/2010

Tragédia da Madeira foi prevista há mais de 25 anos

Depois dos post, Tragédia evitável na Madeira??? , Tragédia que faz pensar e Respeitar a Natureza é preciso, o amigo Amaral de Freitas fez o favor de me enviar o seguinte texto escrito pelo Engenheiro Silvicultor Cecílio Gomes da Silva em Lisboa, em 11 de Dezembro de 1984, e publicado no dia 13 de Janeiro de 1985 no jornal "Diário de Notícias" do Funchal. Embora um pouco extenso, vale a pena ler cuidadosamente esta profecia que, infelizmente, não foi devidamente ponderada durante mais de 25 anos, do que resultaram agora tantos prejuízos a em vidas e haveres.

Segundo diz o meu amigo, provavelmente, «este deve ser um dos “abutres” a que ontem se referia o Alberto João na entrevista com a Judite de Sousa…….!!!!»

Eu tive um sonho
Cecílio Gomes da Silva

Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da Ilha da Madeira, muito especialmente da região a Norte do Funchal e que constitui as bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para o Funchal, dando-lhe aquela fisiografia de perfeito anfiteatro, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma das mais torrenciais dessas ribeiras - a de Santa Luzia - o mundo dos meus sonhos é frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira. Tive um sonho.

Adormecendo ao som do vento e da chuva fustigando o arvoredo do exemplar Bairro dos Olivais Sul onde resido, subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu. Acompanhavam-me dois dos meus irmãos - memórias do tempo da Juventude - em que nós, depois do almoço, íamos a pé, subindo a Ribeira de Santa Luzia e trepando até à Alegria por alturas da Fundoa, até ao Pico das Pedras, Esteias e Pico Escalvado. Mas no sonho, a meio da escadaria de lascas de pedra, o vento fez-nos parar, obrigando-nos a agarrarmo-nos a uns pinheiros que ladeavam a pequena levada que corria ao lado da escadaria. Lembro-me que corria água em supetões, devido ao grande declive, como nesses velhos tempos. De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. O tempo passava e um ruído ensurdecedor, semelhante a uma trovoada, enchia todo o espaço. Quanto durou, é difícil calcular em sonhos. Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. De onde me encontrava via-os transformarem-se numa só torrente de lama, pedras e detritos de toda a ordem. A Ribeira de Santa Luzia, bloqueada por alturas da Ponte Nova - um elevado monturo de pedras, plantas, arames e toda a ordem de entulho fez de tampão ao reduzido canal formado pelas muralhas da Rua 31 de Janeiro e da Rua 5 de Outubro - galgou para um e outro lado em ondas alterosas vermelho acastanhadas, arrasando todos os quarteirões entre a Rua dos Ferreiros na margem direita e a Rua das Hortas na margem esquerda. As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé - único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. A Ribeira de João Gomes quase não saiu do seu leito até alturas do Campo da Barca; aí, porém, chocando com as águas vindas da Ribeira de Santa Luzia, soltou pela margem esquerda formando um vasto leito que ia desaguar no Campo Almirante Reis junto ao Forte de S. Tiago. A Ribeira de S. João, interrompida por alturas da Cabouqueira fez da Rua da Carreira o seu novo leito que, transbordando, tudo arrasou até à Avenida Arriaga. Um tumultuoso lençol espumante de lama ia dos pés do Infante D. Henrique à muralha do Forte de S. Tiago. O mar em fúria disputava a terra com as ribeiras. Recordo-me de ver três ilhas no meio daquele turbilhão imenso: o Palácio de S. Lourenço, A torre da Sé e a fortaleza de S. Tiago. Tudo o mais tinha desaparecido - só água lamacenta em turbilhões devastadores.

Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer. Acordado o resto da noite por tremenda insónia, resolvi arborizar toda a serra que forma as bacias dessas ribeiras. Continuei a sonhar, desta vez acordado. Quase materializei a imaginação; via-me por aquelas chapas nuas e erosionadas, com batalhões de homens, mulheres e máquinas, semeando urze e louro, plantando castanheiros, nogueiras, pau-branco e vinháticos; corrigindo as barrocas com pequenas barragens de correcção torrencial, canalizando talvegues, desobstruindo canais. E vi a serra verdejante; a água cristalina deslizar lentamente pelos relvados, saltitando pelos córregos enchendo levadas. Voltei a ouvir os cantares dolentes dos regantes pelos socalcos ubérrimos das vertentes.

Foram dois sonhos. Nenhum deles era real; felizmente para o primeiro; infelizmente para o segundo.

Oxalá que nunca se diga que sou profeta. Mas as condições para a concretização do pesadelo existem em grau mais do que suficiente.

Os grandes aluviões são cíclicos na Madeira. Basta lembrar o da Ribeira da Madalena e mais recentemente o da Ribeira de Machico. Aqui, porém, já não é uma ribeira, mas três, qualquer delas com bacias hidrográficas mais amplas e totalmente desarborizadas. Os canais de dejecção praticamente não existem nestas ribeiras e os cones de dejecção e tão a níveis mais elevados do que a baixa da cidade. As margens estão obstruídas por vegetação e nalguns troços estão cobertas por arames e trepadeiras. Agradável à vista mas preocupante se as águas as atingirem. Estão criadas todas as condições, a montante e a jusante para uma tragédia de dimensões imprevisíveis (só em sonhos).

Não sei como me classificaria Freud se ouvisse este sonho. Apenas posso afirmar sem necessidade de demonstrações matemáticas que 1 mais 1 são 2, com ou sem computador. O que me deprime, porém, é pensar que o segundo sonho é menos provável de acontecer do que o primeiro.

Dei o alarme - pensem nele.

Cecílio Gomes da Silva, engenheiro silvicultor
Lisboa, 11 de Dezembro de 1984

8 comentários:

Luis disse...

Caro João,
Que pena não terem dado ouvidos a estes sonhos tão reais!
Espero que na reformulação dos leitos e áreas de cheia das 3 Ribeiras se acautelem, para que de futuro não se tornem a verificar mais mortos e prejuízos no Funchal e noutras áreas da Madeira.
Esse deverá ser o objectivo de quem for planear a reconstrução das áreas afectadas!
Um abraço amigo.

A. João Soares disse...

Caro Luís,

Se houvesse lógica no funcionamento da máquina do Estado e administrativa, seria como muito bem dizes. Mas há muitos interesses em jogo, dos proprietários do terreno e das casas a demolir, dos funcionários das Câmaras porque a troco de «atenções» fazem o jeito aos construtores, dos populares que devido à ignorância e apatia não denunciam o que está mal. Os portugueses precisam de uma reciclagem, a começar da estaca zero.

Um abraço
João

Luis disse...

Caro João,
Tens toda a razão "reciclagem a começar na estaca zero", mas em tudo...
Um abraço amigo.

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Queridos amigos!

Só devo poder estar convosco amanhã.
Estou de saída para mais uma reunião Limpar Portugal.

Lamento a minha ausência, mas sabem que vos tenho no coração.

Cuidado com o mau tempo.

Beijinhos

Adelaide Mesquita disse...

Mas porque é que quem manda teima em não ouvir quem percebe do assunto, embora não mande nada...
Em todos os sectores talvez não estivessemos como estamos!
Foi a primeira vez que aqui vim, mas gostei muito do blogue. Vou seguir!

A. João Soares disse...

Cara Milai,

Isto mostra uma incultura generalizada dos portugueses. Os custos da prevenção e da manutenção de máquinas e sistemas, é aparentemente um desperdício de que raramente se vê benefício porque as pessoas afligem-se com as desgraças mas não se apercebem da ausência delas. Sofrem devido a um acidente ou avaria na estrada mas não se alegram por chegar salvos ao fim da viagem.

Neste caso de não se dever construir no leito de cheia acresce a ambição dos donos do terreno, dos construtores e da conivência (a troco de «presentes») dos técnicos das autarquias.

Depois chora-se ter havido dezenas de mortos e milhões de prejuízo.

Mal dos que ficaram prejudicados sem terem tido a mínima culpa.

Um abraço
João

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querido amigo João,

Por uns minutos pensei que esta nossa nona amiga fosse a NOSSA MILAI, que saudades!!!

Beijinhos querida Milai/Mara.

Há coisas que são de tal forma incompreensíveis que até dá para pensar que parece que se esperam mesmo que aconteçam.
Sabe João? Por mais que eu atente nas suas palavras, sempre sábias, e mesmo tenha visto noutras situações e circunstâncias que por razões materialistas se ignora informações cruciais, custa-me a acreditar que haja tanta falta de amor pelo próximo. Que haja gente tão desumana.
Apetece-me amaldiçoar essa gente maldita.
Sei que é feio e que não tenho o direito, mas alivia a dor.

Beijinhos

Luis disse...

Caro João,
A propósito do que referiste que há quem pense que é desperdício os custos com as limpezas e manutenções lembrei-me de um caso passado há uns anos com o Presidente da Camara Krus Abecassis. No ano anterior ao que vou relatar tinha havido grandes inundações por toda a Lisboa originando graves prejuízos. Por essa razão durante o Verão e Outono a Camara de Lisboa procedeu a limpezas e manutenções das áreas de esgotos das ruas havendo ásperas criticas por todo o lado! aconteceu que o inverno desse ano ainda foi mais rigoroso que o anterior e não houve cheias nem inundações! Só nessa altura perceberam que mais vale prevenir do que remediar... e os custos havidos foram bem menores que as indemnizações a haver se tivessem havido prejuízos.
Um abraço amigo.