Transcrição de artigo seguida de uma pequena nota final
O dispensável
Correio da Manhã, 05 Março 2010. Por D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa
Há palavras ou versos que nos rasgam a mente, abrem os olhos e nos deixam a pensar. Dei estes dias de retiro quaresmal com um verso de Sophia de Mello Breyner Andresen que teve este efeito e aqui partilho. Reza assim: "Tudo quanto me acontece é dispensável" (Obra poética, Vol. 1, p. 171).
Fixada na experiência da solidão, a autora do Coral reconhece esta nudez, exercício difícil para cada um de nós, na acumulação de adereços que justificamos e fazemos indispensáveis.
As cenas de destruição, a que estes últimos tempos nos habituaram, podiam, se tivéssemos tempo para pensar, conduzir a nossa reflexão. De facto, esses acontecimentos eram bem dispensáveis!... não nos recordavam o efémero da vida! Porém, Sophia aponta para um "tudo quanto me acontece", o que pode originar desamparada vertigem. Esta sugestão de pleno despojamento assusta.
O conceito de dispensável sofreu grande alteração na época consumista e na lógica da posse que adquiriu espaço quase sem limites, na omnipresente teoria do mercado. Contudo, o desemprego, os salários em atraso e o encerramento diário de empresas põem muita gente no limite de ter de pensar o que é ou não indispensável.
A nível individual, quem conseguir ser livre na relação com os bens e despojar-se, em nome da fé ou da opção por uma vida simples e austera, encontra sabedoria na afirmação "tudo quanto me acontece é dispensável". Que força não encerra esta advertência na hora de moderar o consumo, ainda que para tristeza de alguns negócios, mas para alegria futura de todos. Como implica cautela no endividamento, em vez de incentivo! Como obriga a repensar a utilização dos meios de transporte, a reduzir os desperdícios e a recorrer à reciclagem!
Mais complexos serão os passos corajosos a dar na vida pública, em contexto globalizado, para preparar um futuro no qual não mais haverá trabalho abundante e onde o sistema, até agora imperante, ceda lugar a outra harmonia mais sábia, que atenda a todos os elementos desde a salvaguarda da criação, uma cultura solidária, até um paradigma de desenvolvimento integral e baseado na melhoria das condições de vida de cada local, fomentador de uma democracia participativa. O papel do Estado necessita de ser resgatado para, seguindo princípios éticos, exercer, sem medo, uma andragogia política que ajude a identificar o dispensável e para motivar cada região, em ordem a optar por um desenvolvimento que a faça mais serenamente feliz.
NOTA: Foi aqui publicado há cerca de um mês o post «Dinheiro não dá felicidade», em que estão links que conduzem a «Geração perdida? Não» e a «Mark Boyle: Há um ano sem dinheiro». É preciso aprender a dispensar muita coisa que não é essencial à vida, deixar de adorar o TER e os sinais de ostentação de riqueza e ponderar cada despeza, naquilo que representa de utilidae ou de dispensabilidade. O milionário austríaco Rabeder de um dos textos linkados e o jovem Mark Boyle ensinam que é possível viver com simplicidade, sem consumismo nem ostentação.
O dispensável
Correio da Manhã, 05 Março 2010. Por D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa
Há palavras ou versos que nos rasgam a mente, abrem os olhos e nos deixam a pensar. Dei estes dias de retiro quaresmal com um verso de Sophia de Mello Breyner Andresen que teve este efeito e aqui partilho. Reza assim: "Tudo quanto me acontece é dispensável" (Obra poética, Vol. 1, p. 171).
Fixada na experiência da solidão, a autora do Coral reconhece esta nudez, exercício difícil para cada um de nós, na acumulação de adereços que justificamos e fazemos indispensáveis.
As cenas de destruição, a que estes últimos tempos nos habituaram, podiam, se tivéssemos tempo para pensar, conduzir a nossa reflexão. De facto, esses acontecimentos eram bem dispensáveis!... não nos recordavam o efémero da vida! Porém, Sophia aponta para um "tudo quanto me acontece", o que pode originar desamparada vertigem. Esta sugestão de pleno despojamento assusta.
O conceito de dispensável sofreu grande alteração na época consumista e na lógica da posse que adquiriu espaço quase sem limites, na omnipresente teoria do mercado. Contudo, o desemprego, os salários em atraso e o encerramento diário de empresas põem muita gente no limite de ter de pensar o que é ou não indispensável.
A nível individual, quem conseguir ser livre na relação com os bens e despojar-se, em nome da fé ou da opção por uma vida simples e austera, encontra sabedoria na afirmação "tudo quanto me acontece é dispensável". Que força não encerra esta advertência na hora de moderar o consumo, ainda que para tristeza de alguns negócios, mas para alegria futura de todos. Como implica cautela no endividamento, em vez de incentivo! Como obriga a repensar a utilização dos meios de transporte, a reduzir os desperdícios e a recorrer à reciclagem!
Mais complexos serão os passos corajosos a dar na vida pública, em contexto globalizado, para preparar um futuro no qual não mais haverá trabalho abundante e onde o sistema, até agora imperante, ceda lugar a outra harmonia mais sábia, que atenda a todos os elementos desde a salvaguarda da criação, uma cultura solidária, até um paradigma de desenvolvimento integral e baseado na melhoria das condições de vida de cada local, fomentador de uma democracia participativa. O papel do Estado necessita de ser resgatado para, seguindo princípios éticos, exercer, sem medo, uma andragogia política que ajude a identificar o dispensável e para motivar cada região, em ordem a optar por um desenvolvimento que a faça mais serenamente feliz.
NOTA: Foi aqui publicado há cerca de um mês o post «Dinheiro não dá felicidade», em que estão links que conduzem a «Geração perdida? Não» e a «Mark Boyle: Há um ano sem dinheiro». É preciso aprender a dispensar muita coisa que não é essencial à vida, deixar de adorar o TER e os sinais de ostentação de riqueza e ponderar cada despeza, naquilo que representa de utilidae ou de dispensabilidade. O milionário austríaco Rabeder de um dos textos linkados e o jovem Mark Boyle ensinam que é possível viver com simplicidade, sem consumismo nem ostentação.
8 comentários:
Caro João,
Mais um post enriquecedor! Pena é que os que dizem governar não dêm ouvidos a quem sabe!
Vou colocá-lo na Tulha pois revejo-me nele.
Um abraço amigo.
Boa noite.
Antes de mais nada eu vim te agradecer a visita Fernanda.
João, seu texto é bastante interessante,realmente o que vem do estado é sempre dispensável,aliás, tudo ao q se refere a modernidade atual onde os interesses giram em volta dos colarinhos brancos são dispensáveis justamente por ñ termos a liberdade de expressão.
Ñ sei se comentei á altura mas deixo aqui o meu descontentamento e minha alegria pela qualidade da postagem.Parabéns.
Beijokas.
O texto está bem escrito e ajuda-nos a meditar nas coisas que consumimos e tantas coisas desnecessárias.
Querido amigo João,
Texto muito oportuno e de grande interesse, especialmente tendo em conta os dias de hoje.
Há uma frase que me ocorreu agora, e que pelo menos dispõem bem, embora tenha tudo a ver com o tema
" No Popey é que vai o ganho, já dizia a Olívia Palito".
Estamos em tempos de poupar sim e de pensar no Universo de famintos, e de pensar na natureza cujos recursos são esgotáveis.
Parar e reflectir sobre este tema é URGENTE,
Obrigada amigo.
beijinhos
Ná
Caro Amigo Luís,
Gabo-me de durante a vida ter sido muro de lamentações de várias pessoas. Ontem fui colocado perante um problema que me impressionou grandemente e me manteve o espírito ocupado ao ponto de hoje não ter postado. Mas ontem esse choque levou-me a reagir, de imediato, pela positiva e recordei este texto de anteontem e repesquei-o para publicar com referência a posts antigos.
Este tema não é apenas uma seta ao governo, mas a cada um de nós. Desgastamo-nos com insignificâncias esquecendo o essencial, o indispensável. A maior parte das pessoas esforça-se mais pela marca da roupa, do telemóvel e do carro do que em aperfeiçoar a sua capacidade de discernis o que se passa no mundo e na sua forma de reagir aos solavancos da vida.
Nós somos o nosso saber, a nossa sensatez, a nossa reacção aos percalços, e não o casaco ou o carro.
Há tempos disseste que ias limpar as gavetas. É isso, certamente, terás lá muita coisa dispensável, que já não utilizas ou mesmo que nunca utilizaste. A mente também precisa de ser desimpedida de teias de aranha sem interesse.
Um abraço
João
Cara Pérola,
Muito obrigado pelo comentário. Mas olhe que do Estado vem muita coisa essencial: os serviços públicos, estradas, vencimento dos funcionários, etc.
Cada um de nós perde tempo e dinheiro com coisas dispensáveis. Imagine que um terramoto ou cheias destroem a sua casa e todo o recheio. Fica sem nada. Certamente depois não irá adquirir de novo todas as coisas que perdeu. É que a maior parte delas não eram necessárias, eram dispensáveis. Com o tempo enchemos as gavetas de coisas inúteis e não encontramos coragem para fazermos uma grande limpeza que deixe ficar apenas aquilo que é realmente útil.
Cumprimentos
João
Caro Direitinho,
Além do texto do Bispo, veja os links que coloquei na NOTA. O caso do milionário austríaco Rabeder e o do economista Mark Boyle fazem pensar na loucura que nos leva a adorar o dinheiro, o bezerro de ouro da lenda.
Um abraço
João
Querida Amiga Ná,
Respeito a sua coerência de pensar na Natureza. Os hábitos alteraram-se e hoje desperdiçam-se recursos naturais e exige-se muito da agricultura e da pecuária sobrecarregando o ambiente. Come-se muito mais carne do que há 50 anos, com mais aviários suiniculturas e vacarias, resultando mais poluição, mais desgaste do ambiente. A humanidade percorre o caminho em sentido errado. Em vez de simplificar tudo, complica, confunde, perde a noção do indispensável e adora o supérfluo, o que serve para ostentação. Há pessoas que se viciam de tal forma que não conseguem viver sem os seus luxos e hábitos de opulência. Parabéns ao milionário Rabeder e ao jovem Mark Boyle.
E, minha amiga, não vou repetir o que disse nos comentários anteriores. Espero que não tenha razões para grandes discordâncias.
Beijos
João
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