06/03/2010

Dispensar excessos, consumismo e ostentação

Transcrição de artigo seguida de uma pequena nota final

O dispensável
Correio da Manhã, 05 Março 2010. Por D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa

Há palavras ou versos que nos rasgam a mente, abrem os olhos e nos deixam a pensar. Dei estes dias de retiro quaresmal com um verso de Sophia de Mello Breyner Andresen que teve este efeito e aqui partilho. Reza assim: "Tudo quanto me acontece é dispensável" (Obra poética, Vol. 1, p. 171).

Fixada na experiência da solidão, a autora do Coral reconhece esta nudez, exercício difícil para cada um de nós, na acumulação de adereços que justificamos e fazemos indispensáveis.

As cenas de destruição, a que estes últimos tempos nos habituaram, podiam, se tivéssemos tempo para pensar, conduzir a nossa reflexão. De facto, esses acontecimentos eram bem dispensáveis!... não nos recordavam o efémero da vida! Porém, Sophia aponta para um "tudo quanto me acontece", o que pode originar desamparada vertigem. Esta sugestão de pleno despojamento assusta.

O conceito de dispensável sofreu grande alteração na época consumista e na lógica da posse que adquiriu espaço quase sem limites, na omnipresente teoria do mercado. Contudo, o desemprego, os salários em atraso e o encerramento diário de empresas põem muita gente no limite de ter de pensar o que é ou não indispensável.

A nível individual, quem conseguir ser livre na relação com os bens e despojar-se, em nome da fé ou da opção por uma vida simples e austera, encontra sabedoria na afirmação "tudo quanto me acontece é dispensável". Que força não encerra esta advertência na hora de moderar o consumo, ainda que para tristeza de alguns negócios, mas para alegria futura de todos. Como implica cautela no endividamento, em vez de incentivo! Como obriga a repensar a utilização dos meios de transporte, a reduzir os desperdícios e a recorrer à reciclagem!

Mais complexos serão os passos corajosos a dar na vida pública, em contexto globalizado, para preparar um futuro no qual não mais haverá trabalho abundante e onde o sistema, até agora imperante, ceda lugar a outra harmonia mais sábia, que atenda a todos os elementos desde a salvaguarda da criação, uma cultura solidária, até um paradigma de desenvolvimento integral e baseado na melhoria das condições de vida de cada local, fomentador de uma democracia participativa. O papel do Estado necessita de ser resgatado para, seguindo princípios éticos, exercer, sem medo, uma andragogia política que ajude a identificar o dispensável e para motivar cada região, em ordem a optar por um desenvolvimento que a faça mais serenamente feliz.

NOTA: Foi aqui publicado há cerca de um mês o post «Dinheiro não dá felicidade», em que estão links que conduzem a «Geração perdida? Não» e a «Mark Boyle: Há um ano sem dinheiro». É preciso aprender a dispensar muita coisa que não é essencial à vida, deixar de adorar o TER e os sinais de ostentação de riqueza e ponderar cada despeza, naquilo que representa de utilidae ou de dispensabilidade. O milionário austríaco Rabeder de um dos textos linkados e o jovem Mark Boyle ensinam que é possível viver com simplicidade, sem consumismo nem ostentação.

8 comentários:

Luis disse...

Caro João,
Mais um post enriquecedor! Pena é que os que dizem governar não dêm ouvidos a quem sabe!
Vou colocá-lo na Tulha pois revejo-me nele.
Um abraço amigo.

Anónimo disse...

Boa noite.
Antes de mais nada eu vim te agradecer a visita Fernanda.
João, seu texto é bastante interessante,realmente o que vem do estado é sempre dispensável,aliás, tudo ao q se refere a modernidade atual onde os interesses giram em volta dos colarinhos brancos são dispensáveis justamente por ñ termos a liberdade de expressão.
Ñ sei se comentei á altura mas deixo aqui o meu descontentamento e minha alegria pela qualidade da postagem.Parabéns.
Beijokas.

Unknown disse...

O texto está bem escrito e ajuda-nos a meditar nas coisas que consumimos e tantas coisas desnecessárias.

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querido amigo João,

Texto muito oportuno e de grande interesse, especialmente tendo em conta os dias de hoje.

Há uma frase que me ocorreu agora, e que pelo menos dispõem bem, embora tenha tudo a ver com o tema
" No Popey é que vai o ganho, já dizia a Olívia Palito".

Estamos em tempos de poupar sim e de pensar no Universo de famintos, e de pensar na natureza cujos recursos são esgotáveis.
Parar e reflectir sobre este tema é URGENTE,

Obrigada amigo.

beijinhos

A. João Soares disse...

Caro Amigo Luís,

Gabo-me de durante a vida ter sido muro de lamentações de várias pessoas. Ontem fui colocado perante um problema que me impressionou grandemente e me manteve o espírito ocupado ao ponto de hoje não ter postado. Mas ontem esse choque levou-me a reagir, de imediato, pela positiva e recordei este texto de anteontem e repesquei-o para publicar com referência a posts antigos.
Este tema não é apenas uma seta ao governo, mas a cada um de nós. Desgastamo-nos com insignificâncias esquecendo o essencial, o indispensável. A maior parte das pessoas esforça-se mais pela marca da roupa, do telemóvel e do carro do que em aperfeiçoar a sua capacidade de discernis o que se passa no mundo e na sua forma de reagir aos solavancos da vida.
Nós somos o nosso saber, a nossa sensatez, a nossa reacção aos percalços, e não o casaco ou o carro.
Há tempos disseste que ias limpar as gavetas. É isso, certamente, terás lá muita coisa dispensável, que já não utilizas ou mesmo que nunca utilizaste. A mente também precisa de ser desimpedida de teias de aranha sem interesse.

Um abraço
João

A. João Soares disse...

Cara Pérola,

Muito obrigado pelo comentário. Mas olhe que do Estado vem muita coisa essencial: os serviços públicos, estradas, vencimento dos funcionários, etc.
Cada um de nós perde tempo e dinheiro com coisas dispensáveis. Imagine que um terramoto ou cheias destroem a sua casa e todo o recheio. Fica sem nada. Certamente depois não irá adquirir de novo todas as coisas que perdeu. É que a maior parte delas não eram necessárias, eram dispensáveis. Com o tempo enchemos as gavetas de coisas inúteis e não encontramos coragem para fazermos uma grande limpeza que deixe ficar apenas aquilo que é realmente útil.

Cumprimentos
João

A. João Soares disse...

Caro Direitinho,

Além do texto do Bispo, veja os links que coloquei na NOTA. O caso do milionário austríaco Rabeder e o do economista Mark Boyle fazem pensar na loucura que nos leva a adorar o dinheiro, o bezerro de ouro da lenda.

Um abraço
João

A. João Soares disse...

Querida Amiga Ná,

Respeito a sua coerência de pensar na Natureza. Os hábitos alteraram-se e hoje desperdiçam-se recursos naturais e exige-se muito da agricultura e da pecuária sobrecarregando o ambiente. Come-se muito mais carne do que há 50 anos, com mais aviários suiniculturas e vacarias, resultando mais poluição, mais desgaste do ambiente. A humanidade percorre o caminho em sentido errado. Em vez de simplificar tudo, complica, confunde, perde a noção do indispensável e adora o supérfluo, o que serve para ostentação. Há pessoas que se viciam de tal forma que não conseguem viver sem os seus luxos e hábitos de opulência. Parabéns ao milionário Rabeder e ao jovem Mark Boyle.
E, minha amiga, não vou repetir o que disse nos comentários anteriores. Espero que não tenha razões para grandes discordâncias.

Beijos
João