24/05/2010

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

Esta não é a primeira vez que falo deste tema, se o não fiz aqui, pelo menos publiquei um texto Na Casa do Rau.
Trata-se de analisar os diversos aspectos focados no filme baseado na obra de José Saramago, o Ensaio sobre a Cegueira.
Uma obra prima na minha opinião, sempre naturalmente discutível.
Decidi publicar, novamente hoje mais uns extractos, os que mais me dizem hoje, por razões que se prendem com a cegueira de alguns e a persistência em continuarem nela de muitos outros.


Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

-É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade de ruindade.

-Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira.

-Se queres ser cego, sê-lo-ás.

A história conta sobre um vírus que afecta as pessoas, deixando-as cegas. Curiosamente, esta não é uma cegueira como as outras, onde os cegos se encontram mergulhados num mar de escuridão. Nesta cegueira, como descreve o autor, é como se a pessoa estivesse diante de uma luz que nunca se apaga. Tudo é assustadoramente branco.

O livro leva-nos a reflectir de várias maneiras. A primeira reflexão tem a ver com acontecimentos descritos durante toda a trama. Ela faz-nos pensar em como a nossa sociedade está embassada na visão. Apesar de termos cinco sentidos (alguns ainda crêem que temos seis), sem a visão, tudo desmorona. Perde-se a razão de várias maneiras. As pessoas já não dão importância à higiene e sentimentos como o amor e a gratidão são esquecidos, tornando as pessoas mais primitivas.

A segunda reflexão é sobre como a sociedade, por meio do seu Governo, descarta aqueles que são diferentes, deixando-os entregues à própria sorte. Da mesma forma que os primeiros cegos foram colocados num manicómio abandonado sem grandes ajudas, quantas pessoas se vêem em situação semelhante nas periferias do mundo? Quantas pessoas com potencial, aguardam uma chance para crescerem na vida, para mostrar o seu valor à sociedade? E quantas pessoas como estas se vêem como os cegos no asilo, sem esperança, sem apoio? Isso faz-nos pensar na sociedade injusta em que vivemos que trata aqueles que não se encaixam nos seu padrões ditos normais, com desprezo e violência.

A terceira reflexão é sobre carácter. Da mesma forma que os cegos da primeira camarata do lado esquerdo eram organizados e buscavam o bem comum a todas as pessoas confinadas no manicómio, sempre preocupados com a higiene e alimentação de todos os internos, havia aqueles que não se importavam em viver em um lugar sem higiene, propício ao aparecimento de várias doenças decorrentes da precariedade da limpeza.

Pior que estes, haviam aqueles que tomaram à força o controle da distribuição dos alimentos dentro do manicómio, requerendo primeiramente bens materiais para distribuir a comida, que deveria ser entregue gratuitamente e, em seguida, exigindo que as mulheres de cada camarata fossem ter com eles, cada grupo no seu devido dia. Lá, as mulheres eram violentadas e humilhadas, mas o faziam para ter o que comer. Isso leva a pensar em como nós agimos em momentos de crise: somos organizados, desorganizados ou aproveitamos do momento para espalhar o pânico e ganhar algo com isso? Será que se estivéssemos na mesma situação dos cegos, que tiveram seus direitos e suas mulheres violadas, agiríamos passivamente ou, como eles, aguentaríamos um tempo para nos revoltarmos quando a situação fosse insustentável? Ou então, será que teríamos coragem de nos opormos à tirania e à opressão de um governo auto intitulado e nos organizaríamos contra eles logo de início?

A quarta reflexão é sobre responsabilidade. A mulher do médico foi a única pessoa que não ficou cega e encarou isso como um chamado de responsabilidade. Foi ela que guiou, alimentou e cuidou da higiene dos cegos que faziam parte do seu grupo. Foi grande em presenciar a traição do seu marido com a garota dos óculos escuros e ainda assim entender a situação e perdoar a ambos. Isso me fez pensar nas vezes em que temos olhos quando ninguém mais os tem, quando enxergamos o que ninguém mais viu, em outras palavras, quando sabemos de algo que ninguém mais sabe e, por comodismo, preguiça, falta de confiança ou egoísmo, não nos manifestamos, omitindo nossas opiniões e deixando passar uma situação em que poderíamos ter feito a diferença.

A última reflexão que me ocorreu foi sobre a própria cegueira. Assim como os personagens, eu também pensei o que seria se eu ficasse cega; se, no próximo piscar de olhos, a visão me faltasse. A resposta para o meu caso específico, eu não sei dar, mas o livro deixa uma pista. O ser humano tem a habilidade de se adaptar às mais diversas situações. Se estão todos cegos, eles se organizam em grupos e tentam viver um dia de cada vez, sempre em busca de comida e água, sem os quais não há vida. Talvez comigo seja igual, talvez não. O certo é que eu não quero descobrir.

Depois do exposto, fica fácil prever quais serão as últimas palavras deste texto.Tanto o livro como o filme são fantásticos. Considero difícil ler o livro sem fazer qualquer reflexão ou traçar qualquer analogia com passagens de sua própria vida.
Para quem ainda não viu o filme e leu o livro, ou uma das duas coisas, apelo a que o façam, porque ou nós estamos quase todos cegos e não queremos ver e então andamos por aí só a olhar...ou então quem vê que repare...bem!!!


Na Casa do Rau

15 comentários:

J.Ferreira disse...

Olá!

Vi o filme, aliás vimos o filme, e conseguiste ir buscar o que de mais essencial ele trata.
Parabéns!

Para os que ainda não viram ou leram a obra, talvez convenha salientar que os mesmos contêm passagens de verdadeira crueldade e até grotescas, mas infelizmente assim é a vida.
Pelo menos não é violência gratuita, elas são explicáveis no contexto em que estão inseridas e com o que o autor pretende mostrar.

Virtualmente temos muitos cegos, demasiados mesmo.
No filme todos recuperam a visão, será na na vida real os "ceguinhos" chegarão alguma vez a ver???

Beijo
J.Ferreira

A. João Soares disse...

Querida Amiga Ná,

Não li o livro nem vi o filme. Mas daquilo que sei de Saramago as suas palavras são como parábolas, contos que encerram sabedoria, lições práticas. A Ná coloca esse ponto em evidência aio referir-se à nossa vida prática. Na realidade, por comodidade ou estupidez natural ou interesses ocultos, agimos muitas vezes da reforma mais irracional que se pode imaginar. Há cerca de dois meses, no congresso do PSD, todos votaram (por unanimidade) a «lei da rolha» atrás de um pastor que levou o rebanho para aí. Depois de saírem alguém acordou da paranóia, pensou que foi asneira e, da mesma forma todos foram atrás em direcção oposta à anterior para considerarem que era preciso anular tal decisão. .
Repare que se tratava da nata do maior partido da oposição, candidato ao governo.
Mas não se trata de doença daquele partido., está mais generalizada. É ocaso de todos os deputados do PS se acobardarem em não criticar o Ricardo Rodrigues por ter «fanado» os gravadores dos jornalistas que, passadas três semanas, ainda não os recuperaram e neles tinham trabalhos de entrevistas. É lesivo para os jornalistas as pessoas por eles entrevistadas e a publicação em que trabalham. Coisa de miúdo mal comportado que merece o apoio dos outros ceguinhos. O mesmo caso de cegueira se passou com a lei de financiamento dos partidos felizmente vetada pelo PR.
Cegueira também se nota nos autarcas que acham que o PS não deve apoiar o Alegre, mas se confessam obedientes e seguirem a decisão do pastor do rebanho. Esta é a pior cegueira porque o voto para o PR é individual e secreto.
E chamam democracia a esta cegueira em que todos seguem cegamente o pastor das ovelhas. Há muitos casos e, se ler posts e comentários Do Miradouro, encontrará muito com que se entreter.

Beijos
João
Do Mirante

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Olá!

Sabemos bem ambos, que há muitas interpretações a dar a este livro que virou filme.
O que Saramago tenta dizer-nos é muito lacto... ou muito simples.

Aqueles que ainda não tiveram o prazer de ler ou de assistir o filme jamais descobrirão como uma obra pode tocar até os mais insensíveis ao mostrar como nos tornamos seres bestiais quando livres do olhar avaliador dos outros. Mostrando porque nos tornamos tão desumanos.
Essa parábola é tão bela e poucos enxergam a sua grandiosidade.

Claro que também podemos ver no obra do mestre, alguma coisa como um alerta do tipo só não vê quem não quer...quem não ousa.

Beijo

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querido amigo João,

É pena que não tenha visto ou lido o livro.
Eu acho imperdível, é daquelas obras que vão ficar para a História mesmo.

Na obra a única que não perde visão é a mulher do médico e é ela que lidera o grupo em todas as circunstâncias e fá-lo com abnegação, algum desespero em algumas situações, mas nunca por nunca se aproveitou da situação, bem pelo contrário.
Toda a população daquela cidade estava "encarneirada" mas no meu da desgraça veio a luz e ela venceu as tréguas.

Neste nosso país os carneiros dizem amém a tudo e a todos, mesmo não estando de acordo, ou acordando tarde.
Sabe que o lobo anda disfarçado de carneiro e eles caem todos como tordos.
Mas é como diz, tal e qual, as crianças também não ouvindo sequer a pergunta, respondem em coro, Simmmmmmmmmmmmm ou Nãoooooooooooo.
Tão simples quanto isto.
Infelizmente nós já passamos so Ensiao para a Prática.

Beijinhos

Luis disse...

Querida NÁ,
Também nem li o livro nem vi o filme Mas fiquei com a "pulga atrás da orelha" e quando tiver oportunidade terei o prazer ou de ler ou de ver. Percebo que o tema seja muito actual pois o que não falta por aí são quem não queiram ver e se virem que se não importem desde que possam sobreviver. Faz-me lembrar a história da mulher enganada que diz exactamente o mesmo: " o meu marido não me engana, mas se me enganar que eu não saiba e se vier a saber que não me importe"!!! Mas claro tudo isto porque cairam os Valores na sargeta da vida... Quem tenha Valores e são poucos infelizmente, ao segui-los sofre com o que vê!!!
Mas os cegos se aprenderem esses Valores poderão organizar-se e igualmente fazerem frente a esta cegueira em que vivemos...
Um beijinho amigo.

Pelos caminhos da vida. disse...

Não vi o filme e nem li o livro.

Uma boa noite amiga.

beijooo.

Unknown disse...

Boa noite Ná,
Acho que já te disse que ainda não li o livro, nem vi o filme. O livro já o tenho cá em casa, o filme penso ver assim que puder.

O pior cego é aquele que não quer ver, disso não tenhamos dúvidas.

Beijinhos,
Ana Martins

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Amiga Ana,

Que dizer?

Há filmes ou livros que eu pessoalmente penso que marcam uma época, marcam um a vida das pessoas.
José Saramago é o português Nobel da literatura, e não o foi por acaso, digam dele o que disserem, ele será um marco para a História da Literatura Portuguesa.
Esta é uma obra imperdível, na minha modesta opinião.

Encontrará facilmente o livro, o filme já esteve no circuito comercial, mas encontra o vídeo em qualquer bom clube de vídeos.

Beijinhos

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Olá querida Ana,

Já me tinhas dito sim, eu sei que publiquei algo sobre este tema, outra abordagem anteriormente.

Se tens o livro em cada, tens "obrigação" de o ler.
Leva-o contigo nos teus momentos de lazer, quando fores à praia, ou de férias.
Promete que o lerás.

Beijinhos

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querido Luís,

Desculpe, não levei pela ordem, como costumo fazer, mas diz-se que os últimos são os primeiros.

Se ficou com a pulga atrás da orelha, já cumpri o meu dever...agora mate-a.

Beijinhos

Unknown disse...

Prometo sim Querida amiga,
se ainda não o fiz, é só porque o meu tempo actualmente anda muito escasso.

Um beijinho amigo,
Ana Martins

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querida Ana,

E eu até sei porquê.
Porque será que falta o tempo à nossa Ana???
Vejam só neste link - http://avesemasas3.blogspot.com/

Desculpa a partida Ana, mas é digno de ser apreciado.

Beijinhos

**Viver a Alma** disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
**Viver a Alma** disse...

Querida Ná

Veja como as coisas são:
ao procurar algo na net que não me lembrava mais, aparece-me este blog e logo, com um tema de se lhe tirar o chapéu!

Se reparar bem, a maior "cegueira" que Saramago quis evidenciar era a de CARÁCTER! PORQUE ESTA, É A SÚMULA DE TODAS AS OUTRAS, tão só, porque nela se concentra toda a Essencia do Ser humano.
Carácter é "coisa" com que se nasce! - Por isso...
ou se tem...ou não!

E não é necessário ler esta obra de Saramago ou sequer ver o filme, para aqueles que realmente são cegos, pois não iriam perceber o sentido implícido!
Porque quem não vê, muito menos "repara"!!! - DE LA PALISSE!

Vejo que a política nem aqui escapa mediante tema que daria pano para mangas...
uma pena! - vai sempre tudo dar ao mesmo, como se já não bastassem já as notícias que diariamente vêm a lume e que sinceramente, já NÃO SE AGUENTAM!Mas, como se isso não bastasse, há ainda quem acentue as faltas dos outros, como se não tivesse TELHADOS DE VIDRO! E NÃO IMPORTA SE É ESTE OU OUTRO GOVERNO, SE CÁ OU EM ESPANHA OU NO BRASIL, OU NO IRÃO, OU NO RAIO!
Isto tem alguma consistência??

E AINDA FALAM DE APEDREJAMENTOS?
PARA AQUELAS PESSOAS QUE TÊM SEMPRE PEDRAS PARA ATIRAR???...QUALQUER INDIGNAÇÃO QUE TENHAM ACERCA DA CULTURA RETRÓGRADA E CARNIFICINA DOUTROS POVOS...DEVE-SE CONSIDERAR BRINCADEIRA, NÃO?!

Realmente lerem-se comentários ou posts nesta blogosfera, dum modo geral, não é a melhor escolha, porque não é, de todo, a melhor escola!

deixo o meu abraço de sempre...
Mariz

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Querida Mariz!

Palavras para quê?
Está tudo dito e muito bem, como sempre.

Beijo doce da sua amiga,