07/12/2020

DESNORTE. Por Fátima Bonifácio

 

Desnorte 

30/11/2020M.  Por M. Fátima Bonifácio, Historiadora, in Público



O Chega talvez ajude a criar um espaço de discurso público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo.                                                                                                                                                                                                            

A corrente polémica sobre o Chega é um bom revelador do desnorte político e intelectual que por aí se instalou. O Chega tem peste, ponto; ai de uma direita sensata e comedida que se lhe aproxime. A “geringonça” montada nos Açores, essa então foi um terramoto que tirou o sono não apenas à esquerda, mas também à direita dita “civilizada”. Reconheçamos que a chamada “direita civilizada” é “civilizada” — em observância do breviário socialista — pelo péssimo motivo de que tem vergonha e medo de ser apodada de direita.

A direita nunca se endireitará enquanto não perder esta covardia vergonhosa. Tenho conhecido muitas pessoas que se dizem de direita, mas que logo a seguir desfiam a lista das políticas de esquerda que abençoam. Em suma: a direita portuguesa, comedida, digerível e aprazível ainda não saiu do armário, e continua na defensiva, a desfolhar as páginas de um dicionário de eufemismos. Consequentemente, não tem pleno direito de Cidade. Será tolerada, se se comportar bem, sem demasiadas franquezas, dourando as verdades e com nenhuns exageros. Até há pouco era assim. 

Deixou de ser assim com a chegada da brutalidade de André Ventura. Ventura espantou e chocou muita gente, incluindo eu mesma. Elegeu um deputado — o próprio — e não perde uma oportunidade de ser inconveniente, de chamar as coisas pelos nomes, de violar todas as linhas vermelhas que são as ameias por trás das quais o establishment de esquerda vive aconchegado e protegido. O discurso de Ventura rompe com toda essa “tralha” esquerdista. Fere todas as minhas convicções liberais e conservadoras? Em parte, sim, claro. Mas as minhas convicções liberais e conservadoras, de que não abdico, tal como as de muita gente, não alteram o statu quo, não rompem com o statu quo, não maçam nem ameaçam ninguém. Ora quer-me parecer que é altura de sair do armário e ocupar o espaço não socialista que resta, transitoriamente despovoado, e que ainda é considerável. Isto não se consegue com falinhas mansas, porque estas são imediatamente neutralizadas e acomodadas num cantinho dentro do regime, onde não perturbam a ordem e as primazias estabelecidas.

Ventura apostou em transtornar esta nossa ordem estabelecida, este nosso aconchego caseiro que assenta numa regra basilar: não há licença para ser de direita, só há licença para ser de esquerda, extrema-esquerda ou de centro-direita, que vem a dar no mesmo que o centro-esquerda. Vivemos num regime sentado no centro, mas que, invariável e naturalmente, se espraia para a esquerda. Sejamos claros: uma direita liberal e conservadora não tem os galões necessários para governar Portugal; obviamente, falta-lhe o cursos honorum da esquerda. À cabeça desse cursos honorum figura, é claro, um passado de militância antifascista. Hoje em dia, para quem conviva com as gerações mais novas do que as que descendem de Maio de 68, o “antifascismo” é uma relíquia bafienta que nada lhes diz. Porém, constitui a principal fonte de legitimidade do PCP — pondo em evidência o arcaísmo deste milenarismo laico — e continua a ser um valor muito caro à esquerda em geral. 

 Penso, há muito, que vir a ocupar o espaço não socialista à direita sem o trajecto costumeiro e aceite da travessia pelos areais da esquerda, ou da “amizade” da esquerda, é um engodo. Um engodo e um entrave à afirrmação de uma direita desenvergonhada de o ser. Esse espaço precisa de ser desatravancado; Ventura decidiu invadi-lo e agride toda a gente com o seu tom bombástico e espalhafatoso e os seus ditos heréticos. Talvez eu seja a única pessoa a pensar que o espalhafato de Ventura pode bem ser a única via susceptível de criar condições para forçar a entrada e estadia na Cidade de uma direita emancipada, serena, desempoeirada e orgulhosa. 

E aqui deparamos com o antiquíssimo problema: quem se assume como direita, sem complexos e sem timidez? Pouca gente. Meia dúzia de colunistas que pensam pela cabeça deles. Tudo isto para dizer que a renascença e a reaparição da direita, tal como espelhada no “Manifesto”, precisou — é um facto — da aparição de um André Ventura para quebrar o tabu e lhe abrir um espaço autónomo, sem o constrangimento dos habituais preconceitos. É onde quero chegar: vejo no Chega, justamente pela sua irreverência e falta de maneiras, a possibilidade de terraplanar um território em que uma direita liberal e conservadora poderia assentar arraiais. Por esta razão, porque admito que os destemperos do Chega podem vir a ser frutuosos, não me disponho a diabolizar André Ventura. 

Defino-me como uma liberal-conservadora. O meu valor primeiro, inegociável, é a liberdade individual e colectiva. Creio que apenas um regime democrático nos pode conceder este Bem e é precisamente só por este motivo que apoio sem reservas a democracia. O Estado de direito é outro Bem inestimável, que protege os nossos sagrados direitos, liberdades e garantias. O meu apego ao liberalismo, esse já vem dos tempos de quando me recordo de mim mesma. O conservadorismo deriva da minha visceral aversão a revolucionários e revoluções, uma aversão que aumentou sempre à medida que estudava “A era das revoluções” oitocentistas e, depois, os totalitarismos do século XX. Fiquei a saber com toda a clareza o que não queria. Não queria certamente que tudo ficasse parado no tempo, aliás, um absurdo lógico antes mesmo de ser um absurdo sociológico. O conservadorismo não é retrógrado nem pretende inverter a marcha do Tempo. Edmund Burke (“Reflections on the French Revolution”, 1790) expôs exemplarmente a visão conservadora de uma sociedade através de um exemplo prático: os bolsos da minha casaca estão rotos por dentro, logo eu mando substituí-los por bolsos novos. Depois são as abas da casaca que precisam de substituição. Depois é a gola, etc., etc., etc.. Resultado: com gradualismo, serenamente, sem convulsões, ao fim de uns anos de remendar e substituir, Burke ficava com uma casaca nova sem nunca ter verdadeiramente destruído a antiga! 

Este é o meu conceito de conservadorismo: a evolução gradual sem revolução. A ideia geminada com esta é de que o conservadorismo, assim visto, pode (e deve) acolher a ideia de progresso, mas rejeita todos os revolucionarismos e todos os malabarismos de engenharia social que violentam as consciências e crenças da maioria da comunidade nacional. Como é fácil inferir, não aprecio “vanguardas” que propalam reivindicações alheias ao sentimento da grande maioria da sociedade ou do país. Não as aprecio, mas regozijo-me com a liberdade de existência e de persistência públicas que as nossas leis lhes concedem. Não fosse esta liberdade constitucionalmente exarada, é bem possível que eu não pudesse publicar este texto, que procura sugerir que é possível conciliar o conservadorismo com o progresso e o liberalismo com a ordem social. Ou seja, que “há mais vida” para além do socialismo!...  

O Chega, se conquistar a necessária credibilidade, talvez, espero, crie ou ajude a criar um espaço de discurso público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm, até hoje e com algumas honrosas excepções, impedido a livre expressão de quem não se revê no socialismo. O desnorte político e intelectual criado pela sua aparição parece-me um fenómeno de bom agoiro. 

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