13/10/2011

PORTUGAL, QUE FUTURO?


O TEMA que me foi oferecido, “Portugal, que futuro?”, constitui uma pergunta recorrente desde há uns anos. Ou décadas.

Advirto desde já que creio não poder responder a tal pergunta. Ou então poderia, mas só com fé ou medo, dois obstáculos ao pensamento. Não há pessoa, grupo, partido ou classe capaz de delinear o nosso futuro. Nem sequer afirmar, simplesmente, que, como nação, país e Estado independente, temos ou não um futuro. E não é saudável esperar que alguém, indivíduo ou grupo, se venha a encarregar de estudar, prever e nos oferecer um futuro.

Porquê assim? Por que não é possível prever o nosso futuro? Porque o futuro depende da liberdade de cada um e da liberdade dos povos. As pequenas decisões individuais acarretam as grandes. As decisões de quem dirige implicam depois as decisões de cada um de nós, assim como as dos outros povos. O futuro é uma construção complexa e imprevisível. Além de que o acaso e o imprevisto também fazem das suas.

Nunca esquecerei o poema que me foi enviado por mão amiga, há quase quarenta anos, quando iniciei um período de responsabilidades governamentais:

-------------Verdade, amor, razão, merecimento,
-------------Qualquer alma farão segura e forte.
-------------Porém, fortuna, caso, tempo e sorte,
-------------Têm do confuso mundo o regimento.

Estas quatro linhas, do nosso maior, sugeriram-me de imediato a necessária humildade perante a tarefa e o serviço público.

Além de tudo isso, temos a circunstância do mundo contemporâneo. Há muito que sabemos que “isto anda tudo ligado” e que conhecemos a fábula da borboleta chinesa que provoca a tempestade no Atlântico. Agora, sabemos, melhor do que antes, que não apenas os ventos e os céus, os mares e as correntes, mas também os homens e as mulheres, os Estados e as empresas, estão todos ligados. Como nunca tínhamos estado.

Traçar o nosso futuro ou desenhar os contornos da sociedade que queremos é exercício intelectualmente interessante, mas inútil. O futuro já não nos pertence, a nós, pequeno povo da Europa ocidental.

Apenas podemos prever vários caminhos possíveis. Podemos preparar-nos para todas as eventualidades, como quem segue viagem sem rumo certo e preciso. Todavia, esta minha crença não me faz desistir de perscrutar os tempos vindouros. Pelo contrário. É essa incerteza que me faz insistir, tentar prever todas as hipóteses. É também o que deveria inspirar as autoridades políticas, os que decidem a economia e as elites intelectuais. Sem a ansiedade de prever o imprevisível, nem de planear por intermédio de construções artificiais, podemos examinar o presente, procurando tendências e buscando modos de inflectir e influenciar. Podemos também, como se faz modernamente e deveria fazer entre nós, debater melhor e de modo mais consequente, sobretudo mais colectivamente, o conceito estratégico que define balizas.

Mas importa evitar dois riscos. “Deixar correr”, como se tem feito nos últimos anos, é falta grave cuja enorme factura se acabará sempre por pagar. Como fazemos hoje. E “Prever o futuro”, como alguns acreditarão ser possível, é ilusão infantil.

A globalização retirou-nos certezas. A integração europeia diminuiu-nos a soberania. O endividamento erodiu-nos a independência. O melhor que podemos e devemos fazer é preparar-nos, cuidar das nossas forças, reservarmos capacidades e fazer todo o esforço para que sejamos ouvidos. Mais, para que seja possível participar nas decisões dos nossos vizinhos e parceiros. A integração europeia trazia essa promessa, esse horizonte. Foi assim que iniciámos a caminhada europeia. Cada vez mais, no entanto, esse dispositivo colectivo e solidário está posto em causa. O fenómeno não surpreende aqueles que nunca acreditaram excessivamente num federalismo uniformizador. Mas a verdade é que as regras mudaram. Mais do que as regras, foram também os costumes institucionais e práticos que se alteraram. Avança gradualmente uma estrutura europeia verticalizada e centrípeta, contrária à inspiração inicial. Esta é mais uma razão que nos obriga a pensar e debater.

Não se trata de desenhar ou prever o futuro, empreendimentos impossíveis e destinados ao insucesso mais flagrante. Antes importa, isso sim, não hipotecar o futuro. Não fechar as portas a caminhos possíveis. E prepararmo-nos para diversas jornadas. As nossas decisões unilaterais deixaram parcialmente de ter valor real, de influenciar ou marcar o nosso futuro. E se algumas decisões solitárias nos sobram, como a de seguir um caminho isolado e introvertido, podemos ter a certeza de que a pobreza e a insegurança nos esperam.
Não se veja nestas linhas nostalgia dos tempos de isolamento ou de plena soberania nacional. A segunda metade do século XX mostrou com evidência que o exterior foi fundamental para o nosso progresso interior. Há mais de cinquenta anos que ligámos de forma indelével o nosso destino ao exterior. Com a NATO e a EFTA primeiro, a Comunidade Europeia depois, o mundo envolvente, Europa e o Atlântico, o mundo global, enfim. O exterior, as sociedades abertas e o mercado internacional foram certamente as principais fontes de alguma prosperidade que conhecemos desde os anos sessenta. Assim como das liberdades individuais e públicas, cuja inspiração primordial se vai buscar mais na inspiração e nas experiências dos povos vizinhos do que numa irresistível pulsão interior.

Mas foi também este mundo envolvente que nos trouxe as mais duras realidades do tempo presente. A produção insuficiente, a competitividade reduzida e a mediocridade de recursos tornaram a nossa sociedade mais débil e a nossa economia frágeis. O persistente desequilíbrio das nossas trocas com o exterior corrompeu as hipóteses de desenvolvimento e prosperidade.

Acontece que foi também esse mesmo mundo aberto que tornou ilimitadas as nossas expectativas. Aspiramos, porque o conhecemos, ao que de melhor se faz e tem neste mundo, sobretudo na Europa e na América, com quem nos comparamos obsessivamente. Mas não temos organização nem produção à altura das nossas aspirações.

E por que razão esta interrogação sobre o nosso futuro é tão actual, tão frequente? Será apenas mais uma manifestação desta incessante procura do “nós” colectivo? Creio que não. Vivemos tempos difíceis de desorientação. Depois de trinta anos de melhoramento constante e até de alguma prosperidade, verificamos que o que conseguimos está sob ameaça e que o que está ganho pode ser perdido. Temos agora a certeza de que já perdemos soberania e independência. Entregues às mãos dos credores, os que devem têm seguramente tudo a temer.

Parecia que já tínhamos ultrapassado as dores e as dificuldades de uma metamorfose que nos trouxe da ditadura à liberdade, do Atlântico e de África à Europa. Chegou a parecer que as liberdades e a democracia estavam seguramente ancoradas. Foi possível pensar que uma sociedade aberta e uma economia próspera tinham raízes bem assentes e persistentes. Durante uns breves anos, do final do século XX aos primeiros anos do século XXI, registámos mesmo, pela primeira vez na história, uma balança demográfica positiva: os estrangeiros que nos procuravam para viver e trabalhar eram em número superior ao dos Portugueses que, como era tradição, deviam procurar fazer a sua vida alhures.

Foi um momento passageiro. As saídas de Portugueses para o estrangeiro retomaram como antes, quase a fazer lembrar os anos sessenta de grande hemorragia. As condições económicas e sociais deterioraram-se. Eis que a dívida externa, o défice público, a intervenção internacional e a iminente falência, aparentemente evitada, nos impõem a questão: qual é, qual pode ser o nosso futuro?

É, pois, natural que a pergunta regresse. Ela denota incerteza e insegurança. Mas também a consciência da nossa dimensão e das nossas insuficiências. No entanto, qualquer que seja a nossa dúvida, legítima, não é possível esquecer o que fizemos recentemente. Realizámos, num punhado de anos, obra que nos honra.

Temos razões para estar orgulhosos. Fizemos em trinta ou quarenta anos o que outros demoraram cinco ou seis décadas. Depois de ter passado à beira de fracturas dolorosas e potencialmente trágicas, criámos os fundamentos de um Estado de Direito e de um sistema democrático. Alargámos a todos um Estado providência universal, com relevo para um Serviço Nacional de Saúde, que, mau grado defeitos e ineficiências, cumpre o essencial dos seus deveres e dos seus objectivos. Iniciámos a obra imprescindível de construção de uma sociedade plural onde vários deuses e diversas culturas podem conviver.

Mas também temos motivos para estar apreensivos. Falhámos na democracia participativa e no debate público, baseados numa informação acessível e honesta. Não conseguimos estabelecer uma Justiça em que se possa confiar como última instância de tutela e garantia dos nossos direitos e deveres. Não soubemos valorizar a ideia de responsabilidade pública através da qual uma espécie de frugalidade útil se imponha à voracidade ostensiva do dispêndio inútil. Não melhorámos significativamente os padrões de equidade, nem reduzimos as fontes de desigualdade excessiva. Não vencemos a fraude nem a corrupção, factores de iniquidade e inimigos da decência humana. Pior que tudo, perdemos de vista a continuidade e o futuro, habituámo-nos a viver com se ninguém viesse depois, como se não tivéssemos filhos e netos.

Podemos dizer que somos todos responsáveis. É esta, geralmente, uma afirmação desnecessária e inútil. E enganadora, pois impede-nos de saber porquê e como se chegou a uma qualquer situação. É uma frase que serve mais de desculpa do que de compreensão. Mas aceito que os nossos contemporâneos tenham todos, ou quase, uma quota-parte de responsabilidade, pois elegeram, designaram, confirmaram ou deixaram agir. Mas não esqueçamos que esta responsabilização universal pode conter a dolorosa ironia de culpar também, pelos excessos e pelo consumismo, muitos que nunca, durante estas décadas, deixaram realmente a pobreza e a carência.

Para além disso, que é evidente e não muito esclarecedor, houve evidentemente responsabilidades das autoridades, dos dirigentes, das elites políticas e económicas. A começar pelo uso excessivo de demagogia durante as últimas décadas. Parece ter-se seguido à letra a lição de Álvaro Pais, segundo o cronista. Prometeu-se o que não se podia dar. Deu-se o que se não tinha. E foi-se ainda mais longe. Distribuiu-se o que se não tinha produzido. Adiou-se o pagamento para as gerações futuras. Fez-se o inútil e o dispensável. Frequentemente, ao necessário, preferiu-se o vistoso.

Na política, substituiu-se a ideia de serviço pela da competição. O optimismo ilimitado dos vencedores impediu-os de ver os problemas criados ou não resolvidos. O pessimismo crónico dos vencidos impediu-os de encontrar as soluções. A este propósito, convém comparar os efeitos do pessimismo e do optimismo. Em certo sentido se pode afirmar que estamos diante dos resultados de um optimismo em excesso. Sob o seu reinado, tudo pareceu possível. Fizeram-se os piores erros da nossa história recente. Tomaram-se decisões que hipotecaram o futuro. Desfrutou-se uma tranquilidade que mais pareceu irresponsabilidade. Procurou-se uma facilidade que mais foi cumplicidade. Durante anos, os alertas e as denúncias de dificuldades de que muitos se fizeram eco foram recebidos como desistência crónica, como pessimismo doentio. Tinham razão os pessimistas, pois a lucidez nunca casou com o optimismo.

Temos, evidentemente, um futuro. Mas não sabemos qual é. Necessário é traçar os horizontes, antever as possibilidades... São as nossas escolhas de hoje que farão, sem que o saibamos em pormenor, o futuro. Uma vez mais, esta dúvida é razão forte para discutir e debater em permanência as hipóteses de futuro. Hoje, reinam a incerteza, talvez a insegurança e provavelmente o receio. Mais uma razão para discutir o futuro.

Uma nação informada e um povo habituado a debater e discutir são instrumentos de combate à incerteza. E são meios superiores para lutar contra as dificuldades. Hoje, após o resgate internacional das finanças portuguesas, a falta de informação e a ignorância sobre tantos aspectos da gestão pública recente enfraquecem a capacidade de resistência da população. Quase impedem as autoridades de pedir cooperação e compreensão para os esforços e os sacrifícios que se seguem.

A verdade é que se escondeu informação e se enganou a opinião pública. A acreditar nos dirigentes nacionais, vivíamos, há quatro ou cinco anos, um confortável desafogo. Era então possível fazer planos e criar projectos de grande dimensão e enorme ambição. Em pouco tempo, num punhado de anos, passámos a uma situação de eminente falência e de quase bancarrota imediata. Ainda hoje não sabemos as causas e o processo. Ainda hoje não conhecemos a origem exacta dessa terrível aceleração dos défices e das dívidas.

As causas externas são em parte responsáveis. Com certeza. Como em todos os países do mundo. Ou quase. Mas a maior parte dos países ocidentais não se encontra na mesma situação que Portugal. Algo se passou mais, em nossa casa. Ou fizemos menos, ou fizemos pior. Ou não nos preparámos. Ou não cuidámos da nossa fragilidade. E o facto de saber que dois ou três outros países vivem dificuldades semelhantes, mais ou menos graves, não é suficiente para nos desculpar. Há países e governos, a começar pelo nosso, que foram imprevidentes, complacentes e irresponsáveis. Pode ser grande a origem externa das nossas dificuldades. Mas a verdade é que é isso mesmo o que se pede aos governantes: que prevejam dificuldades, que previnam problemas e que protejam os seus povos durante as tempestades. Tivemos exactamente o contrário: as autoridades acrescentaram às dificuldades, não só pelas suas decisões, como também pelo seu comportamento teimoso e abrasivo.

Repito. Temos evidentemente um futuro. Mas não sabemos qual. Esse futuro depende cada vez mais de outros, dos vizinhos, do grupo do Euro, da União Europeia, dos Estados Unidos e até do resto do mundo. Mas não esqueçamos a lição de um académico americano, Jared Diamond, que alertou para a hipótese de povos e países decidirem, sem saber, extinguir-se. Vários povos, ao longo dos séculos, desapareceram dos seus territórios ou as suas nações dissolveram-se após longas fases de declínio e decadência em resultado da sua própria obra e das suas decisões. Os seus gestos e o seu comportamento eram deliberados, mas as suas fatais consequências eram desconhecidas.

É minha convicção que esse futuro, mesmo muito difícil, será europeu. Mas também creio que a Europa será, dentro de poucos anos, diferente da que conhecemos hoje. Ou muito mais federal, ou mais fragmentada. Gostaria que esse futuro fosse com o Euro, pois de outro modo o poder de compra do nosso povo sofreria um enorme desbaste.

Gostaria igualmente que esse futuro não se limitasse a uma integração no mais vasto conjunto europeu, com desaparição gradual das culturas e das identidades. Estas não têm, para mim, valor absoluto, em si próprias. Valem pelo que significam de mais humanidade e mais dignidade. Estou convencido mesmo que valem também como factor de liberdade dos cidadãos, mais próximos assim das instâncias cujas decisões implicam o seu destino e as suas vidas.

Reconheço não estar a desenhar contornos do futuro, nem sequer garantias, mas tão só a fazer breve lista de desejos. É talvez essa uma maneira de participar no debate nacional que se afigura urgente.

Tão urgente quanto a crise actual, devastadora de energias e de esperanças, tem revelado exigências. Para o nosso futuro, impõe-se, por exemplo, criar mais capacidade soberana e menor dependência dos credores. Como creio que importa ter um olhar diferente e mais ousado para os recursos naturais, a terra, as águas, a floresta e o mar. Já sabemos também que, sem investimento, nunca será possível diminuir a dívida ou aumentar a produção. Tudo deveria ser feito para que o investimento se sinta atraído, confiante e seguro.

Creio ainda que desta crise de incerteza resulta algo mais. A convicção de que os Portugueses não podem ou não devem ser chamados apenas para receber e sofrer as más notícias. Para matérias tão importantes como a sua Constituição e a integração europeia, nunca foram solicitados a debater e participar, menos ainda a aprovar. As escolhas actuais e a dureza do regime económico e social em que vamos viver são tais que é tempo de se fazer justiça ao povo. Informá-lo de modo completo e honesto, chamá-lo a discutir e dar a sua opinião seria uma excelente maneira de começar a olhar para o futuro.

António Barreto - Academia das Ciências de Lisboa, 10OUT2011

3 comentários:

A. João Soares disse...

Caro Luís,

Este é mais um dos excelentes textos do António Barreto. Como é extenso, não o publiquei na íntegra embora o tenha guardado em arquivo, e limitei-me a publicar o post Qual o Futuro de Portugal? no qual transcrevo uma notícia do PÚBLICO com as frases mais significativas que tive o cuidado de realçar.

Já há quem diga que ele está a ser divulgado mais sistematicamente a fim de se candidatar a PR. Se o for, poderá ser o melhor desde o 25 de Abril.

Um abraço
João

Luis disse...

Caríssimo Amigo João,
Deus te oiça são os meus mais sinceros votos!
Um forte abraço.

A. João Soares disse...

Caro Luís,

Do meio da corja de provincianos deslumbrados que andam a criar falsas ilusões e a dar promessas enganadoras, ou ocultar verdades (que talvez nem conheçam) com tabus, indecisões e palavras banais como as do riso das vacas, é bom levantar os olhos e ver um homem sem meias tintas que fala de forma clara, como bom trasmontano, e diz o essencial, mostrando pensar, ter ideias e ver objectivos distantes que orientem os passos de cada dia.
No horizonte não parece haver outro que se possa comparar ao professor doutor António Barreto.

Abraço
João