Na sexta-feira
passada, a Assembleia da
República aprovou por escassa margem legislação que permite a chamada
“coadopção de crianças” por casais homossexuais, (tendo simultaneamente
rejeitado projectos para a chamada “adopção plena”). Este resultado foi
classificado como “avanço civilizacional” por alguns dos seus defensores. Não
creio que seja claro, todavia, de que avanço se trata. A defesa da medida
funda-se basicamente no argumento da não discriminação.
Recusar a adopção
por homossexuais seria uma discriminação e a discriminação é um abuso que não
deve ser tolerado. O argumento é válido, se disser respeito a discriminações
arbitrárias. Mas nem todas as discriminações são arbitrárias. Se um anúncio de
emprego pedir economistas, ele está a discriminar contra todos os que não são
economistas. Um campeonato de ténis para pares mistos está a discriminar contra
os pares não mistos. A idade mínima para votar, ou para conduzir, ou para
consumir álcool está a discriminar contra todos os que têm idade inferior a
esse mínimo. Estes são apenas alguns exemplos de discriminações legais que são
em regra aceites consensualmente. Isso deve-se a que a discriminação em causa
tem relevância funcional, isto é, assenta num requisito discriminatório que é
julgado relevante para a função pretendida.
Por este motivo, não
basta dizer que uma dada regra é discriminatória para poder concluir que ela é
injusta. É preciso saber se a discriminação tem ou não relevância funcional. No
caso da adopção, a função pretendida é bastante clara. Trata-se de proporcionar
um ambiente familiar saudável à criança ou crianças adoptadas. Idealmente, o
juízo sobre essa matéria deveria competir ao interessado, isto é, à criança. No
entanto, devido a uma discriminação que aceitamos como funcionalmente
relevante, consideramos que essas escolhas não podem ser feitas por menores,
sobretudo crianças.
É por isso que o
legislador fica, então, com a pesada responsabilidade de decidir se casais
homossexuais podem ou não, em regra, garantir um ambiente familiar saudável
para as crianças, comparável, em regra, ao dos casais heterossexuais. Não creio
que esta pergunta possa ser respondida com segurança. Temos experiência milenar
de famílias heterossexuais com filhos, mas não temos experiências
representativas comparáveis de famílias homossexuais com crianças. Não podemos
por isso comparar dados empíricos com relevância comparável. Perante esta
ignorância fundamental, temos de escolher uma presunção, não uma certeza. A
presunção que tem prevalecido até agora é semelhante à presunção de inocência.
Quando alguém é
acusado, presumimos que é inocente, até ser provado culpado. Em caso de dúvida,
preferimos considerá-lo inocente — não porque saibamos que é inocente, mas
apenas porque não sabemos se é culpado. O caso da adopção é muito semelhante.
Nós na verdade não sabemos, nem devemos fingir que sabemos, que os casais
homossexuais serão prejudiciais às crianças. O que sabemos é que não sabemos.
Não sabemos se, em regra, o ambiente familiar proporcionado por casais
homossexuais será ou não favorável às crianças.
Em rigor, haveria
uma forma de tirar a limpo esta dúvida: fazer experiências com números
alargados de crianças adoptadas por casais homossexuais e comparar os
resultados com crianças adoptadas por casais heterossexuais. Mas existe um
escrúpulo moral, ou civilizacional, que não nos permite: esse escrúpulo
proíbe-nos de fazer experiências com menores.
Teremos, por isso,
de continuar a viver com a ignorância acerca do impacto de ambientes familiares
homossexuais na educação dos menores. É daqui — e não de uma alegada
discriminação homofóbica — que resulta a norma legal tradicional que veda a
adopção por casais homossexuais. Não havendo certezas sobre o impacto dos
casais homossexuais na educação de menores, é necessário adoptar uma presunção.
Dado que a
relevância funcional da adopção reside em proporcionar o melhor possível para a
criança, optamos pela presunção prudente de proteger a criança de uma solução
cujos resultados não conhecemos.
Ao alterar esta
presunção, como foi parcialmente decidido na passada sexta-feira, nós estamos
na verdade, embora provavelmente sem plena consciência disso, a alterar a
presunção favorável à criança. Estamos a dizer que, na dúvida, preferimos que a
presunção favoreça a escolha dos adultos que querem adoptar, em vez de proteger
a criança que vai ser adoptada.
Não estou seguro de
que esta mudança de presunção corresponda efectivamente a um avanço
civilizacional.
Professor
universitário, IEP-UCP e Colégio da Europa, Varsóvia.
João Carlos
Espada
Cartas de
Varsóvia
no Público, 20 de
Maio 2013
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