Isto
que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.
Mas
houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da
primeira Caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta,
das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro
televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao Estrangeiro.Houve um
tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da
refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se
fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho
e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos
em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala
se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à
sua Joana". E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na
Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945
passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a
selvajaria humana pode arrasar. Houve tempos em que se produzia o que se comia
e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas,
vinhas, searas.
Veio
depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns
pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets
e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se
enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do
trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital.
Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no
condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em
couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas,
assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status,
como a língua nos cães para a sua raça. Foram anos em que o Campo se tornou num
imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente,
entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um
dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.O país que produzia
o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os
citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos
fins-de-semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e
às vezes nem obrigado. O país que produzia o que se podia transaccionar, esse,
ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que
os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras
bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na
idiotização que a TV tornou negócio.
Sob
o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo
de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais
burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes
sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era
apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da
maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os
computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um
oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e
que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma
trinitária pomba.
Às
tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à
mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas
obras, porque estávamos a importar negros e eslavos. A chegada das
lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexisbeque, mas a
folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia
para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de
trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a
medir.
Fora
disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão
alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista
absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro,
e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do
povo, e já leu o New Yorker?
A
agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do
tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em
Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto
pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o
capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende. Aguilhoando
pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à
compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha
e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.
Tudo
quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o
que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele
Balcão bancário buscar dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro, enforcarmo-nos na
figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
Claro
que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear,
puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha
contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso
comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental
e, nos intervalos, imbecilidades e telefofocadas, que entre a oligofrenia e a
debilidade mental a diferença é nula. E, contentes, cretinamente contentinhos,
os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de
futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas"
que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.
Estamos
nisto. Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa. Que interessa?
O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em
Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído
com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do
pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.
José António Barreiros, advogado
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