Desnorte
30/11/2020M. Por M. Fátima Bonifácio, Historiadora, in Público
O Chega talvez ajude a criar um espaço de discurso
público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm impedido a livre expressão de
quem não se revê no socialismo.
A corrente polémica sobre o Chega é um
bom revelador
do desnorte político e intelectual que por aí se instalou. O Chega tem peste, ponto; ai de uma direita sensata e comedida que se lhe
aproxime. A “geringonça” montada nos Açores, essa então foi um
terramoto que tirou o sono não apenas à esquerda, mas também à
direita dita “civilizada”. Reconheçamos que a chamada “direita civilizada” é
“civilizada” — em observância do breviário socialista — pelo péssimo motivo de
que tem vergonha e medo de ser apodada de direita.
A direita nunca se endireitará enquanto não
perder esta covardia vergonhosa. Tenho conhecido muitas pessoas que se
dizem de direita, mas que logo a seguir desfiam a lista das políticas de
esquerda que abençoam. Em suma: a direita portuguesa, comedida, digerível e aprazível
ainda não saiu do armário, e continua na defensiva, a desfolhar
as páginas de um dicionário de eufemismos. Consequentemente, não tem pleno
direito de Cidade. Será tolerada, se se comportar bem, sem demasiadas
franquezas, dourando as verdades e com nenhuns exageros. Até há pouco era
assim.
Deixou de ser assim com a chegada da
brutalidade de André Ventura. Ventura espantou
e chocou muita gente, incluindo eu mesma. Elegeu um deputado — o próprio — e não
perde uma oportunidade de ser inconveniente, de chamar as coisas pelos nomes,
de violar todas as linhas vermelhas que são as ameias por trás das quais
o establishment de esquerda vive aconchegado e protegido. O
discurso de Ventura rompe com toda essa “tralha” esquerdista. Fere todas as
minhas convicções liberais e conservadoras? Em parte, sim, claro. Mas as minhas
convicções liberais e conservadoras, de que não abdico, tal como as de muita
gente, não alteram o statu quo, não rompem com o statu quo,
não maçam nem ameaçam ninguém. Ora quer-me parecer que é
altura de sair do armário e ocupar o espaço não socialista que resta,
transitoriamente despovoado, e que ainda é considerável. Isto não se consegue com falinhas mansas, porque estas são imediatamente
neutralizadas e acomodadas num cantinho dentro do regime, onde não perturbam a
ordem e as primazias estabelecidas.
Ventura apostou em transtornar esta nossa
ordem estabelecida, este nosso aconchego caseiro que assenta numa regra
basilar: não há licença para ser de direita, só há licença para ser de esquerda,
extrema-esquerda ou de centro-direita, que vem a dar no mesmo que o
centro-esquerda. Vivemos num regime sentado no centro, mas que, invariável e
naturalmente, se espraia para a esquerda. Sejamos claros: uma direita liberal e
conservadora não tem os galões necessários para governar Portugal; obviamente,
falta-lhe o cursos honorum da esquerda. À cabeça
desse cursos honorum figura, é claro, um passado de militância
antifascista. Hoje em dia, para quem conviva com as gerações mais novas do
que as que descendem de Maio de 68, o “antifascismo” é uma relíquia bafienta
que nada lhes diz. Porém, constitui a principal fonte de legitimidade do PCP —
pondo em evidência o arcaísmo deste milenarismo laico — e continua a ser um
valor muito caro à esquerda em geral.
Penso, há muito, que vir a ocupar
o espaço não socialista à direita sem o trajecto costumeiro e aceite da
travessia pelos areais da esquerda, ou da “amizade” da esquerda, é um engodo.
Um engodo e um entrave à afirrmação de uma direita desenvergonhada
de o ser. Esse espaço precisa de ser desatravancado; Ventura
decidiu invadi-lo e agride toda a gente com o seu tom bombástico e
espalhafatoso e os seus ditos heréticos. Talvez eu seja a única pessoa a pensar
que o
espalhafato de Ventura pode bem ser a única via susceptível de criar condições
para forçar a entrada e estadia na Cidade de uma direita emancipada, serena,
desempoeirada e orgulhosa.
E aqui deparamos com o antiquíssimo problema: quem
se assume como direita, sem complexos e sem timidez? Pouca gente. Meia dúzia de colunistas que pensam pela cabeça deles. Tudo
isto para dizer que a renascença e a reaparição da direita, tal
como espelhada no “Manifesto”, precisou — é um facto — da aparição de um André
Ventura para quebrar o tabu e lhe abrir um espaço autónomo, sem o constrangimento dos habituais preconceitos. É onde quero chegar:
vejo no Chega, justamente pela sua irreverência e falta de maneiras, a
possibilidade de terraplanar um território em que uma direita liberal e
conservadora poderia assentar arraiais. Por esta razão, porque admito que os
destemperos do Chega podem vir a ser frutuosos, não me disponho a
diabolizar André Ventura.
Defino-me como uma liberal-conservadora.
O
meu valor primeiro, inegociável, é a liberdade individual e colectiva. Creio que apenas um regime democrático nos pode conceder este Bem e é
precisamente só por este motivo que apoio sem reservas a
democracia. O Estado de direito é outro Bem inestimável, que protege os nossos sagrados direitos,
liberdades e garantias. O meu apego ao liberalismo, esse já vem dos tempos de
quando me recordo de mim mesma. O conservadorismo deriva da minha visceral
aversão a revolucionários e revoluções, uma aversão que aumentou sempre à
medida que estudava “A era das revoluções” oitocentistas e, depois, os totalitarismos
do século XX. Fiquei a saber com toda a clareza o que não queria. Não queria
certamente que tudo ficasse parado no tempo, aliás, um absurdo lógico antes
mesmo de ser um absurdo sociológico. O conservadorismo não é retrógrado nem
pretende inverter a marcha do Tempo. Edmund Burke (“Reflections on the
French Revolution”, 1790) expôs exemplarmente a visão
conservadora de uma sociedade através de um exemplo prático: os
bolsos da minha casaca estão rotos por dentro, logo eu mando substituí-los por
bolsos novos. Depois são as abas da casaca que precisam de substituição. Depois
é a gola, etc., etc., etc.. Resultado: com gradualismo,
serenamente, sem convulsões, ao fim de uns anos de remendar e substituir, Burke
ficava com uma casaca nova sem nunca ter verdadeiramente destruído a
antiga!
Este é o meu conceito de
conservadorismo: a evolução
gradual sem revolução. A ideia geminada com esta é de que o
conservadorismo, assim visto, pode (e deve) acolher a ideia de progresso, mas
rejeita todos os revolucionarismos e todos os malabarismos de engenharia social
que violentam as consciências e crenças da maioria da comunidade nacional. Como
é fácil inferir, não aprecio “vanguardas” que propalam reivindicações alheias
ao sentimento da grande maioria da sociedade ou do país. Não as aprecio, mas
regozijo-me com a liberdade de existência e de persistência públicas que as
nossas leis lhes concedem. Não fosse esta liberdade constitucionalmente
exarada, é bem possível que eu não pudesse publicar este texto, que procura
sugerir que é possível conciliar o conservadorismo com o progresso
e o liberalismo com a ordem social. Ou seja, que “há mais vida” para além do
socialismo!...
O Chega, se conquistar a necessária
credibilidade, talvez, espero, crie ou ajude a criar um espaço de discurso
público isento dos constrangimentos e dos tabus que têm, até hoje e com algumas
honrosas excepções, impedido a livre expressão de quem não se revê no
socialismo. O desnorte político e intelectual criado pela sua aparição
parece-me um fenómeno de bom agoiro.